As perguntas mais difíceis vêm quando menos se esperam. Quando desafiei os meus alunos de Empreendedorismo & Inovação a sugerir um tema para este artigo, a primeira mensagem que recebi fez-me quase lamentar ter perguntado: “Gostava de ter a sua opinião sobre a Lei de Mercados Digitais, (Digital Markets Act), da UE e o impacto que pode ter sobre a inovação tecnológica na Europa”.
Podia ser mais desafiante? Dificilmente, sobretudo porque toca num tema sensível – a minha opinião, como economista, do papel da regulamentação no funcionamento dos mercados. E eu habitualmente evito temas sensíveis em público. Mas bom, senti que devia honrar o compromisso e atirei-me de cabeça!
Mas, então, o que é a Lei dos Mercados Digitais (LMD)?
É oficialmente conhecida como Regulamento (UE) 2022/1925 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de setembro de 2022 relativo à disputabilidade e equidade dos mercados no setor digital e veio alterar as Diretivas (UE) 2019/1937 e (UE) 2020/1828 (Regulamento dos Mercados Digitais). Vamos chamar-lhe ‘LMD’, para simplificar.
A LMD visa regular o comportamento das plataformas dominantes no mundo digital, a fim de – segundo a Comissão Europeia – proteger os consumidores, as pequenas empresas e a inovação no mercado digital. Esta lei introduz medidas tais como uma “obrigação de equidade” para as empresas dominantes, a proibição de certas práticas de auto-preferência, e a proibição do chamado “gatekeeping”, práticas que podem ter um impacto significativo nas empresas tecnológicas emergentes, ao limitar o seu acesso aos canais de maior utilização pelo público ativo online.
LMD – amiga ou inimiga dos novos negócios?
Hoje: amiga, sem grandes dúvidas. Define claramente a noção de “gatekeeper” – serviços de intermediação eletrónica – e abrange empresas de grande dimensão e maturidade no mercado europeu, mantendo as mais pequenas fora da maioria do âmbito.
Estamos de acordo que prevenir práticas de abuso de posição dominante só pode ser saudável, e nesse aspeto esta nova lei pode abrir perspetivas interessantes de criação de novos negócios ou de expansão de startups que hoje estejam estranguladas pela dominância de uma Google ou de um Facebook (ou Amazon, ou Alibaba, ou Booking.com, enfim, conforme os setores de atividade).
Ao regular o comportamento das plataformas dominantes e ao proteger o direito de escolha dos consumidores e o acesso das pequenas empresas a esses consumidores, a LMD tem realmente o potencial de desbloquear novas oportunidades de crescimento e inovação no mercado digital da UE. A proibição da auto-preferência, por exemplo, pode ajudar a nivelar as condições de concorrência, impedindo que as plataformas dominantes favoreçam os seus próprios serviços em relação aos dos seus concorrentes. A proibição de “gatekeeping” pode, por seu lado, proporcionar novas oportunidades para novos “players”, uma vez que impedirá as plataformas dominantes de ligar a utilização dos seus serviços básicos à utilização de outros serviços, tais como a publicidade.
Como é que, por exemplo, uma Google vai adaptar o seu algoritmo a estas novas regras para garantir equidade fica, para já, por ver: a LMD entra em vigor no início do mês de maio de 2023 e será totalmente aplicável, estima-se, no primeiro trimestre de 2024.
E no futuro?
Aí começam as preocupações. Como já aprendemos do percurso regulativo de outros sectores, como do setor financeiro, a regulamentação raramente pára na sua primeira iteração e a acentuar-se a tendência sobre os mercados digitais, o que podemos vir a ter é um emaranhado de obrigações, proibições e processos de autorização e/ou verificação centralizados, cujo impacto final será atrasar ou mesmo impedir a criação de novos produtos e serviços que teriam o potencial de melhorar significativamente a vida dos seus clientes potenciais.
Além disso, o custo do cumprimento de novas regras e regulamentos constitui sempre um ónus para qualquer negócio e aumentar a abrangência da LMD sobre empresas de menor dimensão pode vir a constituir um encargo incomportável para startups e pequenas empresas, que podem não ter os recursos necessários para investir no cumprimento legal e técnico, invalidando modelos de negócio de contrário perfeitamente viáveis.
A verificar-se este acentuar de regulação e aumento dos custos a ela inerentes, eu vejo ainda um risco acrescido no médio prazo: um enviesamento de oportunidades, desfavorável para um ecossistema empreendedor pequeno como o português, cujo acesso a capital está em franco crescimento, mas ainda é inferior a outros congéneres europeus.
E não estou sozinha nesta preocupação. Magdalena Piech, Chair da European Tech Alliance EUTA), comentou oportunamente: “Um âmbito demasiado amplo da Lei dos Mercados Digitais arrisca-se a apanhar empresas que não são ‘gatekeepers’. Apoiamos um DMA eficaz, orientado para o conjunto de ‘gatekeepers’ sistémicos, e que não prejudique a capacidade das empresas tecnológicas europeias para competir na economia global de hoje.”
E a reação das empresas na UE?
Apesar destes potenciais desafios, várias pequenas empresas tecnológicas na UE expressaram o seu apoio à LMD, pois acreditam que este ajudará a criar um mercado digital mais justo e mais aberto. Para as mais vocais, a Lei dos Mercados Digitais da UE poderá ter um impacto significativo pela positiva na inovação tecnológica na UE, apesar dos desafios potenciais.
Neste contexto, representantes dos ecossistemas empreendedores e de centros de inovação devem considerar cuidadosamente os potenciais benefícios e desvantagens da LMD, e trabalhar com os reguladores e partes interessadas para garantir que esta apoia o desenvolvimento de um mercado digital dinâmico e aberto na UE.
Já eu, que sou do tempo em que o acesso a bens e serviços em Portugal era muito limitado (e que fui muitas vezes a Ayamonte para comprar caramelos e beber Fanta), ainda sou de opinião que os benefícios dos mercados digitais e da democratização do acesso à informação largamente ultrapassam os pontos negativos. E que um mundo mais livre gera mais inovação.
Sílvia Almeida, professora na Católica Lisbon School of Business and Economics
Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica Lisbon School of Business and Economics
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