O inverno chegou mais cedo este ano ao setor das criptomoedas – logo em maio, quando a Terra (LUNA), que chegou a ser um dos cinco maiores projetos do mundo em criptomoedas, caiu 97% em 24 horas e levou consigo a stablecoin algorítmica TerraUSD (UST). Esta criptomoeda estável perdeu a paridade com o dólar e desceu até aos 0,30 dólares.
Depois, como um castelo de cartas, vários outros projetos caíram – como a Celsius Network, a gestora de ativos Babel Finance, o fundo Three Arrows Capital (3AC) e a Voyager.
Em apenas um ano, a Bitcoin perdeu quase dois terços do seu valor de mercado.
Este longo “inverno” foi um dos temas “quentes” desta edição da Web Summit, que terminou esta sexta-feira, em Lisboa. Vários painéis debruçaram-se sobre a questão que surge em todas as discussões, entre “criptoentusiastas” e entre os mais céticos: será que o inverno veio para ficar? A bolha rebentou?
Ou será este mais um dos habituais ciclos do setor das criptomoedas, que antecedem um novo pico, ainda mais alto do que o anterior?
Afinal, “o inverno é que é”
Esta última hipótese é a mais consensual entre oradores da Web Summit. Nicolas Cary, por exemplo, na indústria há mais de dez anos, diz que este é já o “quinto inverno” que vive no setor.
O fundador da Blockchain.com – o primeiro site a permitir explorar transações na blockchain da Bitcoin – diz que fases como esta, em que o valor das criptomoedas está em baixa, não o deprimem, pelo contrário. “É uma oportunidade formidável para os fundadores”, considera.
Nicolas, cuja empresa criou uma carteira de criptomoedas que representou 28% das transações de Bitcoin entre 2012 e 2020, vê o “inverno” como um “grande momento” para os empreendedores se estabelecerem, de “grande consolidação e menos competição”.
Ainda assim, assume que não é fácil aguentar uma empresa no setor em ciclos como este. “Como no filme Dune, em que as personagens têm de desenvolver o poder do deserto, aqui temos de desenvolver o poder do inverno, para sobreviver a estas fases”.
“Se o teu negócio só depende disso, não vais sobreviver. Tens de pensar em construir um fluxo de receitas saudável”. Apesar de acreditar que não é o fim, Nicolas Cary admite estar preocupado com a duração deste “inverno”.
“Temos um conflito armado, lideranças a mudar, cada vez menos países em democracia. É difícil encontrar um caminho no meio disto”. Ainda assim, sublinha, “é tempo de continuar a construir”.
Também o CEO da corretora Binance, Changpeng Zhao (CZ), desvaloriza o ciclo negativo que as criptomoedas vivem atualmente. Numa sessão de perguntas e respostas muito concorrida, CZ disse aos participantes da Web Summit que durante os “bear markets” (mercados em tendência de baixa, conhecidos como “mercados de urso”) ”há menos a fazer, menos festas, menos coisas entusiasmantes”. Por isso, “é mais fácil contratar”, os salários não estão tão inflacionados.
“Há um ano todos os projetos valiam mais de um milhão de dólares. Todos queriam fazer um projeto. Hoje só os fortes fazem, agora é mais difícil conseguir dinheiro”, diz o fundador da maior corretora de criptomoedas do mundo.
Questionado sobre quando este ciclo irá terminar, Changpeng Zhao, mais conhecido como CZ, afirmou que “historicamente cada ciclo é de quatro anos, um ano de queda, dois anos de recuperação e um ano de pico máximo”, mas “não posso prever o futuro”, diz.
Já aos jornalistas, CZ explicou que a queda das criptomoedas se explica pela correlação que atualmente tem com os mercados de ações. “Hoje vão na mesma direção, porque a maioria das pessoas que fazem ‘trading’ de criptomoedas também trocam ações. Quando o mercado de ações baixa, vendem também as criptomoedas.”
Ainda assim, CZ tem esperança que isso mude. “À medida que o valor de mercado das criptomoedas aumenta e o uso aumenta, isso vai diluir-se”, defende.
Um “criptoentusiasta” e dois céticos entram no palco da Web Summit
O que acontece quando um fundador da Web3 e dois céticos das criptomoedas entram num bar – ou no palco central da Web Summit – para falar do futuro das cripto? No mínimo, um debate aceso sobre o que está na base do setor.
Foi isso que aconteceu esta sexta-feira, quando Charles Hoskinson, um peso pesado do meio das criptomoedas, se sentou ao lado de dois grandes críticos do setor: o ator Ben McKenzie, conhecido pelo papel na série “The O.C.”, atualmente a escrever um livro sobre fraudes no setor das criptomoedas, e a engenheira norte-americana Molly White, autora do site “Web3 is going just Great” – uma compilação diária de todos os “desastres” que acontecem no setor das criptomoedas, desde ataques a esquemas fraudulentos.
Em 2014, Charles Hoskinson ajudou a criar a Ethereum, a blockchain que se seguiu à pioneira Bitcoin. Criou depois, em 2017, a sua própria blockchain, a Cardano, que tem desde então lugar cativo no top 10 das criptomoedas.
Neste debate, não se falou de estações do ano, mas do sentido da própria existência do setor das criptomoedas.
Perante os dois opositores, Hoskinson tentou defender com unhas e dentes o mundo da Web3 – o conjunto de empreendedores que estão a tentar descentralizar a internet através da tecnologia blockchain, libertando-a das gigantes tecnológicas – mas não conseguiu convencer os parceiros de debate.
Ben McKenzie começou por afirmar que as criptomoedas “não são verdadeiramente moedas”, mas antes títulos financeiros (“securities”) e que nesta fase de crise o mundo cripto “está à procura de uma nova história para contar”.
“Grande parte do ar já saiu da bolha”, atirou o escritor, referindo-se aos cerca de dois biliões de dólares que desapareceram do mercado no últimos seis meses.
Hoskinson classificou como “absolutamente bizarro” chamar “security” a um protocolo tecnológico em que os fundadores podem desaparecer, como o fundador da Bitcoin – o misterioso Satoshi Nakamoto, cuja real identidade ninguém conhece.
“Podes criar moedas com isto, é o que El Salvador está a fazer”, considerou o fundador da Cardano, sublinhando que as criptomoedas inspiraram “uma geração inteira de pessoas a reimaginar como o dinheiro funciona”.
Molly White sublinhou que o sistema financeiro tem muitos problemas, mas apontou uma falácia no discurso do engenheiro norte-americano: “não podes assumir que por alguma coisa ser diferente, é melhor. É possível algo ser diferente e pior”.
E para a engenheira norte-americana, a Web3 é realmente pior do que o sistema financeiro tradicional, porque não dá quaisquer garantias aos investidores.
“Tem havido enormes ataques na indústria cripto, ao ponto de já não me surpreender: ‘oh, só 100 milhões de dólares?”, atira a norte-americana, com sarcasmo na voz.
“Não é razoável, não há proteções ao consumidor e as práticas de segurança não existem”, acusa White. “Não compreendo como uma indústria pode dizer que 80% dos projetos são um esquema mas também há coisas a sério. Como é que uma indústria pode levar pessoas a investir sem qualquer tipo de proteção?”, questiona.
Charles Hoskinson admite que, “infelizmente, atualmente os incentivos da indústria estão alinhados para escrever mau software e colocá-lo rapidamente no mercado. Este não é um fenómeno exclusivo das criptomoedas. Vemos isso em Silicon Valley. Sempre que há um desalinhamento de incentivos, temos um problema”.
Mas é aqui, “quando não há alinhamento a nível de incentivos” que “entram os reguladores”, defende o fundador da Cardano.
Charles Hoskinson diz que “já não estamos em 2012” e cada vez mais os reguladores olham para o setor – e dá o exemplo da MiCa (Regulamento “Mercados em Criptoativos”), a regulação europeia para o mercado dos criptoativos que já foi aprovada mas só deverá entrar em vigor em 2024. Ainda assim, admite o empresário, haverá “pratos partidos” pelo caminho.
Pratos que, lembram Ben e Molly quase em uníssono, “são pessoas!” Milhões de pessoas que perderam muito dinheiro.
Os três continuam a discutir de forma acesa sobre se quem tem responsabilidade sobre essas perdas são os próprios investidores ou a indústria, que os deveria proteger.
No final, como em qualquer discussão em que as divergências são profundas, a conclusão não é nenhuma: “agree to disagree”.
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