Ana Teresa Lehmann, antiga secretária de Estado da Indústria, avisa que Portugal e a Europa não podem demitir-se da transição industrial, sob risco de se tornarem um “museu” no contexto da economia mundial.
No painel “Portugal e a reindustrialização da Europa”, da conferência “A Reindustrialização de Portugal”, organizada pela Renascença com o apoio da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, esta segunda-feira, Ana Teresa Lehmann destaca que a posição da União Europa (UE) está “deveras enfraquecida em relação às novas tecnologias”.
Apesar dos “objetivos ambiciosos”, a incapacidade de colocá-los em prática de forma sustentável e célere faz com que a Europa esteja a “perder terreno” para o “bulldozer” China e para os Estados Unidos, que “assentam num modelo de desenvolvimento com grandes empresas, que estão a ser os ‘drivers’ da transição tecnológica”.
“O enquadramento não é fácil, a Europa é dependente de matérias primas básicas, temos um problema de afirmação política. Temos um problema de hiperfragmentação. Portugal replica estas debilidades: é fortemente dependente de fundos europeus, não fomos estratégicos a alocar esses fundos… Eu fui o último membro do Governo que tinha associada a palavra indústria. Temos um secretário de Estado do Turismo, mas não da indústria. Em Espanha costuma haver um ministro da Indústria”, critica Lehmann para ilustrar que “há um problema de relevância institucional e política que depois é decantado em relevância económica”.
“Muitos dos fundos que estão a vir para Portugal são focados em temas não transacionáveis e continuamos há décadas a dizer que temos de apostar nos transacionáveis. Se Portugal e a Europa se demitirem da sua transição industrial, o que vai acontecer é que sermos um museu”, adverte.
Redirecionar o foco para a Indústria
A antiga secretária de Estado defende que Portugal pode “ter um papel de liderança em alguns nichos”, fruto da “tradição industrial notável” que tem. Contudo, tem de responder ao “call to action” do relatório Draghi.
“O que estamos a fazer para isso e para fomentar a digitalização? Políticas de pequeno fôlego. Precisamos de iniciativas mais musculadas, mas não soubemos aproveitar o comboio que tivemos nos últimos anos”, aponta.
Uma das apostas, defende Ana Teresa Lehmann, deve ser a Indústria, em contraponto com o Turismo, uma área “de baixo valor acrescentado e que paga baixos salários”.
“Não tenho nada contra o Turismo, como componente de uma economia diversificada, mas sou contra apostarmos em setores que não são ‘drivers’ de inovação. Devíamos reposicionar as nossas políticas públicas na margem de manobra que ainda nos resta, depois de termos feito escolhas que não foram as mais avisadas, no âmbito dos não transacionáveis, no sentido de conferir essa dignidade ao setor da indústria transformadora. Em todos os países a indústria é um motor do crescimento económico e da inovação. Deveríamos apostar nisso. Apostar no tema da integração vertical da transformação digital da nossa economia, o tema da desburocratização, porque somos um país super burocratizado, não temos pessoas para trabalhar – como é possível que tenhamos a política de imigração que ainda temos?”, questiona.
Problemas de burocracia e recursos humanos
Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP), concorda na questão dos recursos humanos e, em particular, da migração: “A Europa não tem uma verdadeira política de imigração, não cria condições para acolher imigrantes, não tem uma política focada no acolhimento de imigrantes.”
“Esse é hoje um dos grandes problemas que temos nas nossas empresas, a falta de recursos humanos. A Europa vai ter um problema terrível daqui a 20, 30 dias, com a demografia, o perfil demográfico que vai ter e a falta de recursos humanos que vai ter face a EUA e China, mas também a África, que vai crescer imenso e vai ganhar competitividade”, adverte.
O presidente da AEP também considera que Portugal é um país excessivamente burocratizado. “Simplificar a relação do Estado com as empresas e os cidadãos” será uma das principais vias para a valorização da Indústria.
“Tem um custo enorme para o país, para o setor público, na atividade das empresas e na relação dos cidadãos com o Estado. A título de exemplo, as empresas gastam em média 242 horas a preencher declarações fiscais, anualmente. Num tecido empresarial esmagadoramente composto por empresas micro e PME’s que têm até dez trabalhadores, veja-se o impacto que isto tem na produtividade. Temos cerca de 4200 taxas, taxinhas e impostos. Temos de simplificar tudo isto”, assevera.
Maria do Céu Carvalho, EU Funding Partner da KPMG Portugal, assinala, por outro lado, o foco na industrialização e na reindustrialização das novas agendas governamentais.
“Houve uma aposta clara em setores muitíssimo importantes. A indústria têxtil, as agendas para a indústria de tecnologias avançadas, as agendas verdes para a indústria automóvel e a mobilidade sustentável, a indústria da agroalimentar, as agendas na área da saúde e das ciências da vida, na produção de medicamentos. Tem havido uma série de agendas que estão a ver a luz do dia, que devem ser implementadas até 31 de dezembro de 2025, urgentemente, para que as cadeias de valor mais importantes se posicionem”, diz.
Luís Miguel Ribeiro contrapõe que “o modelo das agendas mobilizadoras é dificultado pela burocracia”, ao que Maria do Céu Carvalho reconhece que, “de facto, muitas empresas desistiram, mudaram o seu plano estratégico, redirecionaram investimento”.
“Há muitas dúvidas de como recuperar as empresas que saíram das agendas mobilizadoras. O que peço ao Governo é que nos dê luzes claras de como vão funcionar esses consórcios, para que as empresas consigam atempadamente organizar-se, formar consórcios e concorrer aos concursos”, apela.
Europa entregou o mapa do tesouro à China
António Braz Costa, diretor-geral do Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal (CITEVE), confessa-se “um acérrimo defensor” das agendas, uma vez que “um sistema económico não se faz exclusivamente com PME’s nem apenas com ‘grants'”.
“Faz-se na interação destes vários tipos de empresas, no que diz respeito à dimensão e à capacidade inovadora, mas também no que diz respeito ao cruzamento entre setores. A burocracia dá-me muitas dores nas costas. Muitas universidades, muitas empresas tiveram de atrasar e isso vai ter um corte muito grande nos objetivos globais das empresas”, lamenta.
Para o diretor-geral do CITEVE, o problema está na origem. Começou há 25 anos, quando a Europa “discutiu o paradoxo europeu” – “o facto de a ser o espaço do mundo com a maior criatividade e o maior número de patentes registadas, contudo, não ter a capacidade de explorar economicamente o seu conhecimento e a sua capacidade inovadora” -, mas foi incapaz de encontrar soluções.
“Ao fim deste tempo, percebemos que não só não aprendemos a explorar economicamente a nossa criatividade, como perdemos a nossa criatividade e capacidade de inovar em termos relativos com outros espaços do mundo. Somos vaidosos, aprendemos que somos bons e os outros vão trabalhar para nós. O exemplo da China deve ser tido em conta numa reflexão profunda sobre aquilo que nós achamos de nós próprios e não aquilo que nós somos de facto quando comparados com os outros. A ideia de ter uma fábrica do mundo do outro lado do planeta mostrou-se uma faca de dois gumes que neste momento está a picar-nos a nós, nas nossas costas”, faz notar.
No entender de António Braz Costa, “a Europa ofereceu à Ásia a possibilidade de competir com as indústrias ditas tradicionais, nomeadamente a indústria têxtil, na expectativa de continuar a vender aviões e carros”: “Esta ideia de que podíamos ser ricos e podíamos ter toda a gente a trabalhar para nós foi um tiro no pé, estivemos a ensinar outros que são mais calmos, mas determinados, a seguir o caminho e a encontrar a forma de transformar as suas indústrias em indústrias que não só reproduzem e copiam, mas também são capazes de ter uma estratégia de consolidar a capacidade inovadora.”
“Nada é reversível se não a morte”
Será, então, possível reverter a situação em que a Europa e Portugal se encontram?
Para Luís Miguel Ribeiro, o relatório Draghi e outros alertas “não são mais do que a consequência do que temos andado a fazer, ou não temos andado a fazer, nos últimos anos”. O problema é a “falta de capacidade de colocar em prática”.
“Não sei se é recuperável. Neste modelo que temos, a Europa vai continuar a ter muita dificuldade em tomar decisões, demora muito tempo a tomar decisões, a conciliar políticas e a ter apostas claras. Os outros são muito mais céleres a tomar decisões, a agir e a criar condições para que isso aconteça”, sustenta.
No entender de José Braz Costa, “nada é irreversível se não a morte”.
“Já vi outros corredores partir da última posição para chegar à frente, a China é um caso desses. Mas temos de atuar”, declara.
Maria do Céu Carvalho concorda que Portugal “está a fazer um caminho”, nomeadamente com o PRR, “com os mais de 20 mil milhões que entraram em Portugal e com os 25 mil milhões de euros do Portal 2030”.
“Não chegaremos lá tão rapidamente, e se calhar não conseguimos combater grandes economias. Estamos a fazer um caminho, mas tem de ser feito de forma mais acelerada”, admite.
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