//Andre Jordan. “Os portugueses têm um grande complexo em relação ao turismo”

Andre Jordan. “Os portugueses têm um grande complexo em relação ao turismo”

Aos 85 anos, André Jordan lançou um livro de memórias que começa na Polónia e vai até aos EUA. Ao DV, o “pai do turismo português” recorda episódios do passado e deixa conselhos aos líderes do futuro.

Criou a Quinta do Lago, Vilamoura e o Belas Clube de Campo quando apostar no turismo em Portugal era “excêntrico e pouco sensato”. Aceita o epíteto de “visionário”, mas quando olha para a obra que deixa feita vê apenas “um grão de areia”. O seu livro de memórias começa na Polónia e vai até aos EUA, passando pelo Brasil e Argentina, e culminando naquele que acredita ser “o melhor país do mundo”, onde aterrou há cinco décadas.

O que conta neste livro que nunca tinha contado?
Quase tudo. Para muitos, eu sou o homem da Quinta do Lago, não cheguei a Vilamoura e muito menos ao Belas Clube de Campo. Às vezes encontro pessoas na rua e perguntam como vai o Algarve, eu moro em Lisboa há 30 anos. Neste livro conto a minha vida antes de vir para Portugal. Falo do Brasil, dos EUA, da Argentina. Dos lugares onde vivi e onde participei na comunidade. Essa sempre foi a minha forma de ver o mundo: fazer parte de uma comunidade.

É considerado o Pai do turismo. Está orgulhoso da sua “descendencia”?
A criação é muito absorvente, e quando o produto aparece, seja um livro, uma música ou um filho, não é possível ter uma visão distanciada. Ainda hoje entro na Quinta do Lago e fico impressionado, 50 anos depois ainda não me habituei àquilo. E as criações são lições de humildade. Tenho noção de que tenho uma obra feita, que é interessante e que custou muito suor e lágrimas, mas é um grão de areia. Mas um grão de areia válido.

Portugal descobriu o potencial do turismo demasiado tarde?
Há um aspeto relacionado com o ciclo social e outro aspeto prático. Por motivos que não percebo ainda, os portugueses têm um grande complexo em relação ao turismo, acham que não é uma atividade nobre. Não perceberam que tínhamos a oportunidade de entrar diretamente na era dos serviços sem passar pelas dores da era da industrialização. Portugal tem de ser uma base e não um interlúdio lúdico. Temos de ser a base de um estilo de vida e de negócios, porque temos todos os fatores que interessam. O grande erro dos últimos anos foi pensar que a internet era a forma de promover o turismo, porque a internet vende preços. E nós vendemos Portugal como um país barato, não há outro país do mundo em que, por tão pouco dinheiro, haja tanta qualidade. E isso tem sido mau para nós. Temos de apostar na qualificação do turismo, até por razões territoriais. O turismo tem de ser de qualidade. Não gosto da palavra luxo porque faz alusão ao desnecessário. O turismo deve ser encarado como uma atividade económica imprescindível e temos vantagens incontáveis. Portugal passou a ser um ponto de convergência das pessoas que têm a capacidade de fazer uma vida boa sem exageros.

O que diz às pessoas que afirmam que Portugal tem turistas a mais?
Quero que me expliquem o que é a mais ou a menos. É ridículo. Há turistas a mais em certos sítios, como em todo o mundo. Nova Iorque recebe 60 milhões de turistas entre as ruas 34 e 60. Uma milionária americana disse-me: “precisamos de todos eles”. É o nosso petróleo e depende apenas de nós.

Qual o maior problema que a nossa economia tem de resolver?
Estou por descobrir. Há problemas estruturais, como não termos matérias-primas ou dimensão para ter muita agricultura. Noutro dia li uma análise que comparava o marketing do vinho do Porto com o do champanhe. França soube transformar o champanhe num produto de luxo que vende milhões, nós continuamos a vender o vinho do Porto aos poucos. O marketing e a promoção do produto bem feita e dirigida aos segmentos que interessam são o grande segredo. Há problemas de produtividade e qualificações, mas tudo isso pode ser ultrapassado.

Que conselhos deixa a quem vai desenvolver o país?
É preciso ter a coragem de ousar, de transformar a burocracia num instrumento útil ao desenvolvimento económico. Portugal não é o mesmo país de quando comecei, há 50 anos. Estava adormecido e atrasadíssimo, entre Lagos e Faro não havia um restaurante decente. Quando comecei a Quinta do Lago queria mostrar às pessoas o portuguese style, que é sóbrio e elegante mas não é extravagante. Decidi por isso fazer um restaurante, a partir da ruína de uma casa de campo e quando a Direção Geral do Turismo foi classificar o restaurante, disse-nos que não podia dar a categoria de luxo porque não tinha alcatifa nem cortinas. Mas aquilo foi um sucesso brutal, atraiu muita gente e lançou o desenvolvimento da restauração em Portugal. Num dado momento, todos os restaurantes com estrela Michelin em Portugal eram à volta da Quinta do Lago, por causa da Casa Velha. As pessoas perceberam o que iria ser a Quinta do Lago, porque não tivemos medo de arriscar.

Considera-se um visionário?
Sei que vi coisas antes dos outros. Não só no sentido da obra, mas no sentido do mundo. Tenho tido alguma capacidade de previsão, porque analiso muito, estudo muito, e faço correlações, para tentar perceber as tendências e consequências. Mas não tenho pretensão de ser considerado visionário.

E tem previsões, agora?
Estou muito preocupado com o aquecimento global e com a Inteligência Artificial. Acho que eram precisos acordos globais. Se não o fizermos não sei o que será da humanidade. A Greta Thunberg é um fenómeno fantástico, essa menina trouxe a realidade para o presente. As questões ambientais não emocionavam as pessoas, porque parecia que ia ser algo com consequências para as gerações seguintes e a humanidade é muito egoísta. Todas as coisas que hoje são consideradas nocivas, eram o máximo: o automóvel, o avião, o plástico. Crescemos a apreciar a qualidade de vida que a indústria nos ofereceu e hoje dizem-nos que temos de abandonar isso. Por isso não pode mais haver ideologias, isso está desatualizado. Os desafios serão tão violentos que não podemos ter partidos. Stephen Hawking, que considero o homem mais extraordinário do meu tempo, dizia que a IA vai superar, dominar e destruir o homem. Temos de levar isso a sério e tem de haver um acordo sobre a IA, têm de ser estabelecidos limites. Os automóveis sem condutor, por exemplo, vão deixar milhões de pessoas sem trabalho; às casas da Quinta do Lago só lhes falta voar. Com isto quero dizer que vai ser gerado muito desemprego e a tecnologia não vai criar empregos na mesma proporção, por cada mil que desaparecem, são criados 50. Isso já está a acontecer. Vai haver um encolhimento do nosso modo de vida e não vamos poder viver com o luxo e com as facilidades que vivemos hoje.

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