//“As previsões sobre a automatização e a perda de empregos ainda não se concretizaram”

“As previsões sobre a automatização e a perda de empregos ainda não se concretizaram”

Na primeira entrevista em Portugal depois do lançamento de “História do Trabalho – Uma Nova História da Humanidade” (Temas e Debates), o historiador holandês, Jan Lucassen, diz à RR que quis dar voz às pessoas, aos trabalhadores e aos patrões, quis que fossem eles, com as próprias histórias, a explicarem como o trabalho se foi transformando no tempo.

As 600 páginas podem intimidar, mas esta produção que espelha uma vida de ensino e investigação também pode ser lida como uma enciclopédia, por temas, se facilitar o leitor.

Nesta entrevista, Jan Lucassen fala de alguns dos temas que determinaram a evolução do trabalho, desde a evolução dos meios de pagamento à migração, passando pelo trabalho escravo até à valorização do trabalho doméstico e a emancipação das mulheres. Analisa ainda o último capítulo desta história, aquele que estamos todos a escrever, e que passa pela revolução tecnológica e um mergulho profundo na Inteligência Artificial.

Que balanço faz da relação do homem com o trabalho ao longo dos tempos? Há uma evolução positiva?

Durante muito tempo, 99,9% da população tinha de trabalhar, senão morria. Não havia a opção entre férias ou trabalho, ou trabalhavam ou morriam. E para grande parte da população mundial, isso ainda é um fato da vida.

Toda a discussão sobre a importância do trabalho e do tempo livre é um luxo, uma discussão que abrange uma parte muito pequena da população.

Isto não quer dizer que o trabalho tenha de ser doloroso, porque como seres humanos somos criadores e tentamos fazer algo com o trabalho. É um erro concluir que, porque é necessário para quase todos, é forçosamente um castigo.

O trabalho não é apenas para ganhar dinheiro. Desde muito cedo, também foi usado para definir classes sociais e estruturar a sociedade?

Sim, porque também desde os primórdios da humanidade não trabalhamos sozinhos, é uma atividade social. Em casa, por exemplo, há uma divisão de tarefas, mas também em quase todas as situações de trabalho, trabalhamos em grupo.

Começa com os caçadores-coletores, porque percebemos, como uma evidência biológica, que caçar é uma atividade de grupo. Podemos ter tendência a pensar na caça como um ato solitário de um grande caçador que mata um búfalo ou outro animal, mas se o pode matar é porque foi perseguido por um grupo muito grande de pessoas em determinada direção. Então a caça passa a ser uma atividade de grupo.

Há um aspeto social muito importante no trabalho, e acho que você mencionou a “relação de trabalho”, que tendemos a ver como uma relação vertical. Há o patrão e o trabalhador e quando o primeiro explora o segundo o segundo tenta escapar, opor-se ou atacar. Isso é uma parte importante do trabalho assalariado.

Igualmente importante, é a relação entre os trabalhadores, que pode incluir gentileza, maldade, excluídos, etc.

Mas, em termos económicos, o trabalhador surge como uma unidade, isolado?

Na história económica, tendemos a pensar demais nos trabalhadores como indivíduos. Temos o trabalho real per capita, o salário real per capita, e outras expressões desse tipo.

Tendemos a pensar de forma muito individualista sobre o homem ou a mulher trabalhadora. Acho que a história do trabalho é muito mais rica.

Podemos dizer que as mudanças no trabalho ao longo dos séculos ocorreram muito lentamente?

A maioria dos desenvolvimentos na história ocorre lentamente.

A valorização do trabalho doméstico e a ocupação de cargos de poder por mulheres são exemplo disso?

Eu tento enfatizar muito no meu livro, que devemos pensar no trabalho independentemente de ser pago ou não. Criar filhos ou preparar uma refeição em casa, é tanto trabalho quanto o que é feito numa fábrica, por um salário.

Pode-se argumentar que a maior parte deste trabalho doméstico foi gratuito ao longo da história, não foi pago em dinheiro, como se faz agora. Eu uso uma definição muito abrangente de trabalho, independentemente de ser pago ou não, pago em dinheiro ou não – é tudo trabalho.

É por isso que a primeira imagem do meu livro é de uma dona de casa em Amsterdão a dar banho a crianças na rua, só para mostrar que o trabalho central é tratar da comida, das crianças, etc.

Esse tipo de trabalho, trabalho doméstico, é hoje muito mais valorizado.

Espero que sim. Pelo menos há uma tendência para apreciá-lo e, é claro, isso está relacionado com a emancipação da mulher. O que, automaticamente, chama mais a atenção para o trabalho não remunerado que muitas mulheres fizeram na história e ainda fazem. Os homens também o podem fazer.

Mas esta é apenas parte da história.

O que tem mais impacto no desenvolvimento do trabalho: a evolução natural ou fatores externos?

É uma questão quase filosófica! No meu livro vê que a maioria dos desenvolvimentos ocorre lentamente, o que pode ser interpretado como uma evolução natural.

A Revolução Russa, onde em alguns anos é decidido que o trabalho autónomo de sapateiros, açougueiros e afins, acaba e todos os trabalhadores pagos passam a assalariados, uma transformação assim tão drástica, num curto espaço de tempo, é muito raro.

Outro exemplo é o trabalho escravo dos inimigos dos nazis, na Segunda Guerra Mundial: de repente há uma lei que proíbe, por exemplo aos judeus, a ocupação de determinados trabalhos e envia as pessoas para campos de trabalho forçado.

Vemos acontecer o mesmo na China de Mao e, talvez, no século XX, onde há muitos estados poderosos com capacidade de introduzirem grandes mudanças num período muito curto.

Que mudanças marcaram o rumo da história?

Uma das mudanças mais importantes foi a introdução da economia de mercado e da economia monetária.

Significa a invenção dos pequenos trocos, em que os trabalhadores são pagos e podem ir ao mercado comprar algo com esse dinheiro. É um dos maiores desenvolvimentos da história, mais ou menos na mesma época, digamos 500 anos A.C., na China, no norte da Índia e no sudeste da Europa, no mundo grego. Mas também isto levou várias gerações, aconteceu durante algumas centenas de anos.

Se recuarmos ainda mais, encontramos a revolução neolítica da revolução agrícola. A mudança de caçadores-coletores para agricultores, um processo muito lento que leva milhares de anos.

Neste livro fala ainda da relação entre migração e trabalho. Hoje, uma das razões pelas quais os países facilitam a entrada de migrantes é a necessidade de mão de obra.

Atualmente, especialmente nos países da Europa Ocidental, devido ao envelhecimento da população e ao alastrar dos cabelos grisalhos, como eu, assistimos a mudanças na população: uma parte crescente da população é mais velha e uma parte menor é mais jovem.

Isso significa que aqui, na Europa Ocidental, mas ainda mais no Japão e na Coreia do Sul, e também vai acontecer agora na China, há uma procura crescente por pessoas de fora.

No século XIX isso significou um aumento da imigração, foi assim na América, mas também na Manchúria, na Índia e em todo o tipo de países.

A Europa era um continente parcialmente ascendente para a América e claro para a Austrália, Nova Zelândia, Canadá, etc. Mas a Europa também recebia, em particular se considerarmos a urbanização, e o século XIX é o século do crescimento das grandes cidades, o que implica muitos imigrantes, porque as cidades não crescem por crescimento natural, especialmente no século XIX. Qualquer crescimento das cidades significa imigração líquida.

A necessidade mantém-se, mas a imigração enfrenta hoje novos obstáculos.

O que temos agora é uma nova situação, em que há uma grande procura por trabalhadores, mas por razões políticas muitos países têm muito medo de permitir a imigração livre.

O Japão é um excelente exemplo, eles tentam evitar qualquer tipo de imigração. Mas também há o Golfo. O campeonato mundial de futebol do Catar foi preparado por milhares de trabalhadores do Bangladesh e das Filipinas, em trabalho quase forçado e condições muito duras. Mas a parte principal da história é que estes trabalhadores nunca serão cidadãos desses estados do Golfo, que têm uma ideia muito limitada sobre cidadania.

Na Europa Ocidental temos agora a “fortaleza Europa”, com pessoas a afogarem-se no Mediterrâneo e nos mares da Europa.

Estas questões estão a ser resolvidas, parcialmente pela contenção da urbanização, parcialmente pelo mercado livre e pelo mercado laboral. Na Holanda há procura para a construção, na Bulgária participam em campanhas agrícolas, o mesmo acontece aqui em Portugal. Recentemente, a França introduziu legislação que permite trabalhadores agrícolas, sazonais, do norte da África, especialmente Marrocos, por um determinado número de meses, mas depois têm de regressar ao país de origem.

O trabalho pode ser usado para apoiar os mais desfavorecidos, mas acaba muitas vezes por acentuar as desigualdades. Porquê?

As desigualdades já existiam antes da economia de mercado, devo enfatizar.

Podem ser ampliadas? Onde os Estados permitem que os empregadores explorem trabalhadores, onde os Estados impedem os trabalhadores de se organizarem. A questão principal é saber quais são as regras do jogo?

Que tipo de exploração o Estado permite? Acabámos de falar do Golfo, onde a exploração é legalmente permitida. Na Europa Ocidental esteve em discussão se os trabalhadores se podiam organizar, porque podiam formar monopólios de trabalho e exigir aumentos salariais – foi o que os movimentos socialistas conseguiram.

Esta é uma parte importante da história moderna da Europa, o direito de organização não existia antes, em França só a partir da década de 1870 é que os sindicatos foram autorizados como tal. E depois temos a autorização de greves dos trabalhadores.

São todas estas condições que determinam atualmente o poder de empregadores e assalariados, onde a economia de mercado é a forma dominante de organização da sociedade, dependendo dos países, obviamente.

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