Vítor Constâncio regressou esta terça-feira ao Parlamento para explicar se teve ou não conhecimento prévio dos financiamentos da CGD a Berardo para a compra de ações do BCP e se tomou partido na guerra pelo poder no maior banco privado português. O antigo governador do Banco de Portugal, que desempenhou essas funções entre 2000 e 2009, admitiu que os empréstimos do banco público causaram, a posteriori, preocupações. Mas argumentou que o supervisor nada poderia fazer, sob pena de estar a violar a lei.
Crédito a Berardo
Os deputados chamaram de novo Vítor Constâncio ao Parlamento depois de o Público ter divulgado documentos a indiciar que o ex-governador teve conhecimento prévio do financiamento de 350 milhões de euros da CGD à Fundação Berardo em 2007. Na sua primeira ida à comissão, a 29 de março deste ano, Constâncio disse que só teve conhecimento desse empréstimo após este ter sido concedido.
Em junho de 2007, a Fundação Berardo enviou para o Banco de Portugal um pedido de autorização para poder deter entre 5% a 10% do BCP, explicando que iria tomar essa posição com recurso a financiamento da CGD. Vítor Constâncio reconheceu que se fosse gestor do banco público não teria aprovado essa operação. Mas garante que como supervisor estava de mãos atadas.
O antigo governador argumentou que segundo a lei então em vigor, o Banco de Portugal teria de averiguar a “licitude dos fundos” e “requeria a verificação da idoneidade e sua solidez financeira”. E garante que isso foi feito. Os serviços do Banco de Portugal concluíram, de forma “inequívoca e favorável”, a que Berardo aumentasse a posição no BCP. E argumentou que caso se opusesse a essa tomada de participação isso “seria ir contra a lei e contra a proposta técnica dos serviços a dizer que não havia razões legais para deduzir oposição”.
Constâncio explicou que esse pedido de aumento de participação não implicou que tivesse sabido do crédito da CGD antes da sua concessão. “O contrato de crédito entre a Fundação e a CGD já tinha sido aprovado meses antes de o Banco de Portugal ter autorizado o reforço de participação”, garantiu o antigo governador. E rejeitou que esse crédito estivesse condicionado ao parecer positivo do supervisor na subida de posição no BCP.
Solidez financeira da Fundação
Os deputados confrontaram Constâncio com o argumento de a legislação lhe dar poder para travar a subida de participação da Fundação Berardo por esta entidade não ter solidez financeira suficiente. A deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, referiu que a Fundação Berardo tinha, nos anos anteriores ao crédito, resultados operacionais negativos e não tinha fluxos de caixa suficientes para honrar o serviço de dívida.
O antigo governador defendeu-se com os serviços do Banco de Portugal, afirmando que deveriam ter feito uma análise exaustiva das contas da Fundação Berardo. O parecer que lhe foi entregue garantia que a entidade tinha um histórico de solidez financeira. No entanto a própria direção de risco da CGD e os auditores das contas dessa entidade mostraram reservas sobre a saúde financeira da fundação.
A gestão sã e prudente
Constâncio refugiou-se sempre na leitura sobre a legislação para responder às críticas dos deputados sobre o que o Banco de Portugal não fez para evitar os créditos ruinosos na CGD. O governador foi confrontado com um artigo do Regime Geral das Instituições de Crédito (RGIF) sobre a “gestão sã e prudente”.
“Sempre que tiver conhecimento do projeto de uma operação por uma instituição de crédito que, no seu entender, seja suscetível de implicar a violação ou o agravamento da violação de regras prudenciais aplicáveis ou infringir as regras de uma gestão sã e prudente, o Banco de Portugal pode notificar essa instituição para se abster de realizar tal operação”, refere o RGIF.
Constâncio defende-se, considerando que apenas teve conhecimento posterior das operações, já depois de estas serem projetos de financiamento. “Quando tive conhecimento e quando as bolsas começaram a cair, o que se fez foi o que são os poderes do supervisor: recomendar o reforço de garantias e que se constituíssem as provisões para as perdas potenciais”, disse. Realçou que os rácios de capital da CGD nunca passaram abaixo do nível mínimo exigido, o que, defendeu, é a grande missão da supervisão.
Constâncio como testemunha e a “mentira” de Berardo
Quando foi ouvido na comissão, a 10 de maio, Berardo afirmou que teve reuniões à porta fechado apenas com Vítor Constâncio. Não quis revelar o teor das conversas porque, disse, ficou combinado que isso ficava fechado naquelas quatro paredes. “Tudo isso é mentira e vou analisar essas declarações que ele fez na comissão”, afirmou o antigo governador.
Constâncio garante que nunca se encontrou, a nível profissional, a sós com Berardo. Recorda uma reunião em 2007 pedida pelo empresário e em que o então se fez acompanhar pelo diretor dos serviços jurídicos do Banco de Portugal e pelo subdiretor para a supervisão. Disse que confrontou Berardo com críticas que este tinha feito ao Banco de Portugal e que a reunião foi curta porque o empresário madeirense esperava que apenas estivesse presente Vítor Constâncio. A reunião foi breve e “caricata”, disse o antigo supervisor, já que Berardo a abandonou por estarem mais quadros do Banco de Portugal presentes. “Não receberia Berardo sozinho para tratar de assuntos profissionais”, garante Constâncio.
Em reação, fonte oficial da Fundação Berardo, indicou ao DV que “o senhor comendador está incrédulo com a falta de memória do ex-governador do Banco de Portugal relativamente a uma reunião que mantiveram os dois, a sós, no mês de julho de 2007, na sede do Banco de Portugal”. Referiu ainda que, “depois de saber das declarações do Sr. Dr. Vítor Constâncio, Berardo não tem mais dúvidas que o ex-governador será testemunha, ainda que se apresente antecipadamente como testemunha hostil.”
Já sobre a possibilidade, avançada pelo Público, de que Berardo pondera chamar o antigo governador como sua testemunha num processo contra os bancos, Vítor Constâncio avisou que “ele terá que ponderar muito se lhe interessa que eu seja testemunha”. Argumenta que “ao contrário do que ele procura fazer crer, todo o património da Fundação responde sobre este crédito”.
Preocupação com créditos da CGD, mas nada podia ser feito
Constâncio admitiu que o Banco de Portugal percebeu que havia crédito concedido pelo BCP para a compra de ações do próprio banco que estava a ser pago com empréstimos da CGD, num contexto de guerra de poder no maior banco privado que estava a inflacionar o valor das ações. Além de Berardo, também a Teixeira Duarte, Manuel Fino e Goes Ferreira, por exemplo, pediram crédito ao banco público para reforçar no BCP durante o verão de 2007.
O antigo governador admitiu que havia “alguma preocupação” com essa situação. Mas que “não se podia fazer nada”. Constâncio considerou que as “operações eram legais e faziam parte do sistema. Era o mercado a funcionar”. Confrontado por Mariana Mortágua sobre se sabia que 8% do BCP estavam dados como penhor, Constâncio disse que “não fiz a conta”. Mas garante que eram “operações normais no sistema”, não só em Portugal como nos outros países, e que o supervisor tem “poderes limitados”.
E realçou que, contrariamente ao que tem sido avançado, os créditos não estavam garantidos apenas pelas próprias ações. “Não era exposição direta ao BCP, pode ir ao património dos devedores. Não era qualquer um de nós que poderia pedir créditos dessa dimensão”.
Constâncio vs. Pinhal na guerra do BCP
Filipe Pinhal, antigo administrador e presidente do BCP, acusou Vítor Constâncio de ter feito parte de uma teia que urdiu o assalto ao poder do banco privado em 2007. Mas o antigo governador garante que “não houve qualquer interferência” nessa batalha entre os acionistas do BCP.
No entanto, Constâncio recebeu acionistas do BCP no Banco de Portugal a 21 de dezembro de 2007. Após essa reunião, Carlos Santos Ferreira acabaria por ser escolhido pela maior parte dos grupos que estavam presentes no capital do BCP para liderar os destinos do banco. Pinhal considera que essa escolha foi influenciada pelo antigo governador.
Constâncio rejeita essa tese. “Foram convocados de acordo com as participações que tinham e estavam acionistas dos dois principais lados” da disputa do BCP. Estas “guerras” entre acionistas são “legítimas” e “fazem parte da iniciativa privada”. Explicou que grandes acionistas do BCP estavam a contactar o Banco de Portugal após as notícias de irregularidades na gestão do banco privado e que entendeu que o mais adequado seria convocá-los a todos para uma reunião.
Garantiu que disse aos acionistas que não havia ninguém inibido de exercer funções bancárias. Mas avisou que existiam “fortes indícios das irregularidades e que isso resultaria em processos de contraordenação”. O antigo governador explicou que não foram revelados os nomes de potenciais envolvidos porque, na altura, ainda não se poderiam tirar conclusões.
Mas Constâncio reconheceu que “a partir do dia em que veio nos jornais que existiam irregularidades qualquer acionista pensaria que as pessoas que estavam no banco poderiam sofrer consequências”. Filipe Pinhal disse que esse foi um dos argumentos que Constâncio utilizou numa reunião com ele para o pressionar a sair das listas para a liderança do banco.
O ex-governador rejeitou que tivesse tido interferência na escolha da nova administração. Duarte Marques, deputado do PSD, confrontou Constâncio com o facto de Carlos Santos Ferreira e Armando Vara terem saído diretamente da CGD, depois de aprovarem créditos a acionistas do BCP, para a liderança do banco privado. E questionou qual o motivo para o Banco de Portugal não avaliar essa situação.
Na resposta, o antigo governador disse que esses administradores do BCP “já tinham a idoneidade porque estavam em exercício na atividade bancária e que essa terá sido uma das razões para os acionistas escolherem pessoas que estavam já no sistema”.
Calúnias interessam a Berardo e Pinhal
Vítor Constâncio classificou de calúnias” as notícias a indicar que enquanto governador do Banco de Portugal deu luz verde ao empréstimo de 350 milhões de euros da CGD a Berardo para a compra de ações do BCP.
“São calúnias que podem servir de tentativa de vingança de alguns que foram condenados e afastados do sistema. E foram muitos”. Apontou a mira a Filipe Pinhal, que diz não ter credibilidade por ter sido condenado pelo Banco de Portugal, CMVM e pelos tribunais no caso das offshores do BCP.
Além de Filipe Pinhal, o antigo governador afirmou que há mais pessoas que podem querer vingança. “Há outros culpados de semelhantes crimes que querem fazer crer que o banco central e o governo” são os responsáveis quando alguma coisa corre mal.
Segundo a versão de Constâncio, as notícias servem ainda “os interesses objetivos de Berardo de que se diga que as únicas garantias eram as ações” para deixar de “responder com o seu elevado património” pelos empréstimos concedidos pela CGD.
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