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A cerâmica é dos maiores consumidores de gás natural, sendo responsável por 18% do consumo total da indústria transformadora. A par disso, é um grande consumidor de energia elétrica, dado que os fornos, embora abastecidos a gás natural, não funcionam sem uma componente de eletricidade. E atendendo a que os preços da eletricidade subiram mais de 300% e os do gás natural mais de 400%, o setor está em risco de “colapso iminente”. O alerta é da Associação Portuguesa da Indústria Cerâmica (APICER), que pede ao governo que tome “medidas transitórias” de apoio à indústria. As empresas lamentam a falta de uma estratégia da energia enquanto fator determinante para a competitividade da indústria.
A situação tem vindo a agravar-se nos últimos meses e levou já a Cifial-Indústria Cerâmica, SA a anunciar o despedimento de 41 trabalhadores invocando precisamente o “descontrolado aumento dos custos da energia” que torna “insustentável a atividade na indústria cerâmica”. O gás natural representa entre 30 e 40% dos custos de produção da indústria.
Luís Sequeira, presidente da APICER, reconhece que a situação não é um exclusivo nacional, já que todas as empresas na Europa “vivem o mesmo drama”, no entanto, lamenta que a indústria seja apanhada por esta crise, à qual é alheia, numa altura em que o setor vinha registando “um crescimento significativo, nomeadamente nos mercados internacionais”. Em causa estão 1200 empresas, que dão trabalho a 18 500 pessoas e geram uma faturação anual de quase 1,85 mil milhões de euros. O volume de exportação é da ordem dos 800 milhões e destina-se a mais de 160 países.
A APICER já pediu ao governo medidas de apoio, designadamente a possibilidade de as empresas aderirem ao lay-off simplificado, mas também a redução dos impostos e das taxas de acesso às redes de gás natural, a exemplo do que foi feito na eletricidade. Luís Sequeira reconhece que a situação não é de fácil resolução, até porque tem a ver com questões geopolíticas, como o conflito da Rússia e da Ucrânia, “que tornam difícil traçar uma estratégia para o futuro”, no entanto, admite que a gravidade de situação obriga a que algo seja feito. “Para uma pequena empresa que fature 20 milhões de euros – e das 1200 empresas do setor, 800 têm menos de 10 trabalhadores – um custo energético de cinco milhões torna impraticável a sua sobrevivência”, frisa.
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A inexistência de uma estratégia energética nacional ou europeia que tenha em conta a competitividade da indústrias é uma das principais preocupações
Mas a APICER quer também que o novo governo olhe com atenção para a questão da descarbonização. “Não discutimos o processo, debatemos os timings definidos que são absolutamente impossíveis de cumprir. A alteração do gás natural para um combustível verde, eventualmente o hidrogénio, vai obrigar à mudança de fornos e equipamentos e, além de exigir enormes investimentos, não estamos preparados, em termos tecnológicos para isso. É preciso tempo para desenvolver essas soluções”, sublinha.
Além disso, há outras questões ambientais a ter em conta, designadamente as “dificuldades” na extração de matérias-primas. “Hoje em dia, tudo o que mexa com o ambiente, mesmo que não de forma relevante, é motivo de perturbação social”, diz, sublinhando a necessidade de ser criada uma agenda para o setor. “O problema é demasiado sério para que tenhamos que andar a pedir soluções avulsas”, frisa.
Marcelo Sousa, da Matcerâmica, de São Mamede, concelho da Batalha, concorda com a análise. Com uma capacidade instalada para a produção de um milhão de peças ao mês, esta é uma das maiores cerâmicas nacionais e europeias, especializada no fabrico de louça utilitária de mesa, em grés e faiança. Dá emprego a 600 pessoas e gera uma faturação da ordem dos 24 milhões de euros.
Exporta praticamente tudo o que produz, maioritariamente para os Estados Unidos e os países europeus. Os custos energéticos são uma “preocupação profunda” para a empresa, até porque viu o seu fornecedor de energia elétrica rescindir o contrato de longo prazo que tinha, invocando precisamente a alteração de circunstâncias decorrentes do disparar dos preços. E, de um mês para o outro, a fatura de eletricidade da Matcerâmica “mais do que triplicou”.
Mas o que preocupa mesmo Marcelo Sousa é a “ausência de uma estratégia energética, a nível nacional ou europeu, dentro de uma lógica de produção industrial”, sobretudo atendendo a que a China e Ásia estão a “investir como nunca” em centrais a carvão, que lhes garantirão custos energéticos muito mais baixos”.
“O ambiente está sempre presente na atividade industrial, mas a indústria não é tida em conta no ambiente e isso deixa-nos assustados”, diz o empresário, para quem é claro que “o timing e as metas da descarbonização têm de ser repensadas”, já que constituem um fator que influencia e muito os preços da energia. Além do mais, lembra, “está a exigir-se uma transformação acelerada quando não há, a nível tecnológico, solução alternativa aos fornos”. Além de um “alívio” nas meta da descarbonização e da introdução de benefícios fiscais para empresas com “bons índices de contribuição” para o emprego e o crescimento económico, Marcelo Sousa defende a imposição de taxa de carbono para produtos importados da Ásia, onde as exigências ao nível da descarbonização são diferentes, fragilizando a competitividade das empresas europeias”.
Com o fim do seu contrato anual, a Norterra, empresa de Barcelos especializada na produção de vasos e artigos de jardim e decoração, viu a sua fatura de gás natural disparar 400% nos últimos três meses do ano: o preço por KWh passou dos 0,024606 euros para 0,124234 euros. Filipe Sousa, sócio-gerante da empresa, estava habituado a pagar nove mil euros mensais. A primeira conta que recebeu após o fim do contrato, em outubro, foi de 25 mil euros.
A empresa procedeu a alguns ajustes operativos e, em novembro, já “só” pagou 23 mil euros. Em dezembro, graças a uma redução da produção e do consumo de gás para metade, dando prioridade a encomendas que consumem menos gás, pagou 18 500 euros. Sem essa intervenção teria gasto 34 mil euros, já que dezembro foi o mês em que o gás natural atingiu o seu preço mais alto.
Mas Filipe Sousa reconhece que esta não é uma solução viável a prazo. “Em algum momento vou ter que servir os meus clientes”, frisa. A fatura de janeiro ainda não chegou, no entanto, está à espera de qualquer coisa em torno dos 30 mil euros.
Esta é uma empresa familiar, com 30 trabalhadores, que fatura 1,3 milhões de euros e exporta mais de 90% do que faz. Tem nos Estados Unidos o seu principal mercado externo, mas vende também para o Canadá, Inglaterra, Bélgica, Alemanha e Holanda, entre outros mercados europeus. A Eslovénia é a conquistra mais recente, mas tem já experiência de venda para a África do Sul e a Austrália.
A descarbonização acelerada é uma das causas para o disparar dos preços da energia. Sem alternativa ao gás, a cerâmica pede um alívio nos ‘timings’ ou nas metas
Apesar da pandemia, a Norterra nunca parou nem precisou de recorrer ao lay-off. Março de 2020 foi um “mês crítico”, com “muitas encomendas canceladas”, mas dois ou três meses depois a empresa já estava a laborar em pleno. Em 2020, as vendas cresceram 11% e em 2021 aumentaram mais 20%. Neste ano, Filipe Sousa espera aumentar o seu volume de negócios na ordem dos 13%. E, apesar das enormes dificuldades geradas pelo disparar dos preços do gás natural, o gerente garante que não irá dispensar trabalhadores. “Não vou abdicar de qualquer funcionário. Vamos ter que suportar esse custo e procurar gerar a produção, apostando menos na linha de vasos vidrados, que é o nosso cartão de vistas e representa 80% do que fazemos, mas que consome muito mais gás do que a linha pintada. Não é a solução ideal, mas é a que temos enquanto esperamos, a ver se os preços do gás natural baixam”, explica.
Mas não são só os custos energéticos que dispararam. As matérias-primas, do cartão ao vidro, aumentaram, tal como aumentou o custo da mão-de-obra. A empresa pretendia aumentar os seus preços 5% para fazer face a estas variações, mas só o agravamento do gás natural no último trimestre representa um aumento direto sobre a produção de 10%. “Nenhum cliente aceitaria um aumento direto de 15%, por isso, o que estamos a fazer é a tentar negociar um ajuste de 10%. E nem todos os clientes estão a aceitar, na realidade, devo acabar por ficar com um aumento médio de 7% porque há já acordos firmados que não vou conseguir cancelar”, diz Filipe Sousa que sublinha: “Estamos a trabalhar no fio da navalha, praticamente sem qualquer margem de lucro”.
E se a Norterra tem “um bom suporte financeiro”, inclusivamente com o apoio da banca, muitas outras empresas não o têm. Até pela sua dimensão. “Há muitas micro empresas, de três ou quatro pessoas, que estão desprotegidas, dependendo, maioritariamente, da subcontratação dos seus serviços por parte de outras empresas. Todos estamos a sofrer, mas há empresas que não têm voz”, refere o responsável.
Para Filipe Sousa, a solução está nas mãos do governo. “A única solução que vejo seria, durante um curto período de tempo, até que esta situação esteja toda regulada, haver algum alívio da carga fiscal sobre os consumos energéticos. Até porque são setores muito sobrecarregados de impostos e acredito que haja muitas empresas que não terão estrutura para se aguentar e que vão começar a despedir pessoas”, alerta.
Para reduzir o seu consumo de energia, ao mesmo tempo que reduz a sua pegada ecológica, a Norterra vai em breve arrancar com um investimento ao abrigo do PT2020, aprovado em dezembro, para a instalação de painéis solares e para a criação de uma plataforma elevatória que irá permitir não só aumentar o espaço de produção na empresa, que começa a faltar, dado o crescimento dos últimos anos, mas também uma redução no consumo de gás natural.
“Esta plataforma vai permitir uma melhor secagem das peças de forma natural, devido à subida do carlor e do arejamento, e baixar os consumos de gás no processo de secagem, reduzido o tempo de utilização de estufa”, explica Filipe Sousa. Além disso, a empresa está a investir na digitalização, com a instalação de equipamentos robotizados para assegurar uma maior capacidade no processo de acabamento e decoração das peças. Em causa está um invetsimento global da ordem dos 200 mil euros.
Quanto ao gás natural, aguarda que o preço baixe para valores comportáveis, para fechar posição em novo contrato anual. Até porque, para já, não há alternativa. “A vidragem é um processo de fusão que exige temperaturas bastante consistentes e que, segundo os técnicos que consultámos, ainda não é possível obter com recurso à eletricidade”, frisa.
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