As casas inteligentes já saltaram dos cenários de cinema e televisão para as cidades onde habitamos há muito tempo, mas esta é uma transição lenta. À exceção dos projetos pensados de raiz, a transformação vai sendo feita pela substituição de equipamentos por outros mais eficientes, com mais capacidade e, preferencialmente, mais sustentáveis. Mas o utilizador precisa mesmo das soluções disponíveis? Em entrevista à Renascença, à margem da Cimeira Digital With Purpose, James Evans, investigador e professor de geografia humana na Universidade de Manchester, questiona a utilidade das novas soluções tecnológicas e o impacto da sua implementação.
Este especialista em cidades inteligentes e sustentabilidade refere ainda que os dois conceitos não são necessariamente determinantes, esta é uma questão ainda em avaliação. James Evans aponta também os desafios das cidades inteligentes e sustentáveis e dá vários exemplos do que está a ser feito pelo mundo. Defende ainda que a evolução tecnológica e científica pode ser acelerada com mais partilha e acusa o setor editorial de impedir essa troca de conhecimento ao limitar o acesso, sujeitando a investigação a um duplo pagamento.
Como descreve uma cidade inteligente?
Idealmente, é uma cidade que usa tecnologia, tecnologia digital, frequentemente, para melhorar a vida dos residentes.
Já temos cidades inteligentes ou estamos a transformar as cidades para serem inteligentes?
Essa é a pergunta dos 60 milhões de dólares! Temos certamente cidades que mudaram com a tecnologia digital. Se pedir um Uber pelo telefone, está a utilizar tecnologia das cidades inteligentes.
E essas mudanças tornaram as cidades mais sustentáveis?
Por um lado, podemos dizer que sim, talvez isso impeça que as pessoas conduzam ou tenham mesmo carros próprios. Por outro lado, podemos dizer que não, porque na verdade permite que mais pessoas aluguem carros particulares. Há algumas evidências de que as pessoas não usam transportes públicos e é preciso ter um smartphone com uma conta bancária para poder usar esse serviço. A verdade é que “o júri ainda não decidiu”. Não sabemos se muitas destas tecnologias estão a tornar as cidades mais sustentáveis e, no geral, se melhoram a vida das pessoas.
A verdade é que “o júri ainda não decidiu”. Não sabemos se muitas destas tecnologias estão a tornar as cidades mais sustentáveis e, no geral, se melhoram a vida das pessoas.
Primeiro é preciso mudar os comportamentos, a forma como as pessoas reagem e fazem as coisas?
Sim, e acho que é sobre entender quais são as necessidades das comunidades e cidades. O que as pessoas realmente querem consertar, o que elas precisam, o que elas gostam. Outro exemplo clássico seria o Airbnb, que pode criar fontes de receita em certas cidades para indivíduos privados. Mas, em excesso, pode esvaziar comunidades, talvez até mesmo destruí-las, criar problemas de planeamento. Não se trata de ser bom ou mau, mas de se ajustar ao lugar e à comunidade envolvente.
O que é que uma cidade inteligente precisa de ter para ser considerada uma cidade inteligente?
O essencial é a conectividade. É preciso um bom sistema de internet sem fio, 4G, 5G e assim por diante. Tem ainda de ter uma população que seja digitalmente alfabetizada, muitos já o são. Em grande parte de África, o nível de propriedade de smartphones é de mais de 100 dispositivos por 100 pessoas. É claro que são necessários os serviços certos neste continente. Idealmente, serviços digitais que melhorem os lugares, ajudem a aumentar a coesão da comunidade, a resiliência.
Antes de falarmos das cidades inteligentes, por que não falamos das casas inteligentes primeiro?
Ouvimos falar muito das casas inteligentes e, normalmente, acaba por resumir-se ao controlo de interruptores de luz através do telefone.
Tem uma casa inteligente?
Vou ser honesto, porque pesquisei sobre o tema, comprei vários produtos de “casa inteligente”. Nenhum deles me poupou tempo ou aborrecimento suficiente para que investisse na substituição de todas as lâmpadas para inteligentes.
Temos esta tecnologia incrível, da internet das coisas, em que uma lâmpada pode ser conectada à internet. Mas as pessoas precisam realmente disso e usam?
Provavelmente, um exemplo melhor serão os medidores inteligentes para uso de energia, que deve ser bom porque permitem que as pessoas vejam claramente quanto é que estão a gastar. Mas, em muitos países não foram amplamente adotados, porque as pessoas estão preocupadas sobre quem usará os seus dados. Vão para o governo, são acumulados pelas empresas de energia? Não foram comunicados com clareza os benefícios desta tecnologia.
A tecnologia não está a ser usada, por receio de que não seja segura?
Há definitivamente preocupações, não apenas com a segurança, mas também com a forma como os dados serão usados, para quê, por quem. Há um trabalho excelente a nível da UE, que tenta encontrar formas das pessoas partilharem os dados com as autoridades municipais, em vez de desaparecerem em empresas privadas. Em vez de pagar para ter acesso à informação, deveria poder optar por partilhar a informação com o meu provedor de transporte local para que eles possam melhorar a minha vida. Darem-nos mais poder sobre os nossos dados, acho que seria um bom começo.
Outra preocupação são os que ficam para trás, porque nem todos os cidadãos têm acesso à tecnologia. Vai aumentar a desigualdade?
É a questão da alfabetização digital. Há certamente grupos socioeconómicos mais baixos na sociedade, e talvez pessoas mais velhas também, com menos alfabetização digital, que não conseguem aceder a alguns destes serviços. Outro desafio é a inovação, é transformar ideias em dinheiro. É muito mais fácil dirigir os serviços a pessoas com dinheiro, mas muitos dos desafios das cidades estão associados a pessoas com menos dinheiro.
Pode exemplificar?
Em Nairobi, no Quénia, as pessoas fazem fila para terem acesso a água potável em torres junto aos bairros residenciais. Há quem caminhe horas para chegar a estes postos e a água acaba antes de abastecerem, o que as obriga a irem para o posto seguinte. Uma startup local instalou um sensor em todas as torres de água e criou uma aplicação para os telefones, que indica o nível de água disponível em cada uma, para que as pessoas não percam tempo em filas onde já não existe água. É uma inovação de baixo para cima, que aborda uma necessidade real de muitas pessoas.
Gratuita?
Sim. É é uma aplicação com publicidade e o custo dos sensores nas torres de água é realmente muito baixo. Os benefícios são enormes. São principalmente as mulheres e as crianças que fazem esta tarefa e que, desta forma, ficam livres para irem à escola ou ganharem dinheiro, essencial para o desenvolvimento.
O que este exemplo nos diz é que este tipo de tecnologia deve ser gratuito e acessível a todos?
Sim. Uma das coisas realmente extraordinárias é o nível de propriedade de smartphones em grande parte do mundo, mesmo nos lugares mais pobres. Há outros desafios nessas geografias, muitas vezes quem vive na informalidade não tem nem consegue abrir conta bancária. Ou seja, qualquer iniciativa que dependa da transferência de dinheiro de uma conta bancária formal pode ser um problema. No entanto, há muitos sistemas de envio de dinheiro, sistemas digitais que podem contornar isto. No essencial, a questão é como conectamos a tecnologia com as necessidades no terreno.
E isso é possível sem custos para as pessoas? Ou estamos a promover a exclusão?
Esse é o outro lado da tecnologia, Sou um cientista social por formação. Muitas vezes falamos sobre a comunidade como se fosse uma coisa única. Vivemos todos em comunidades e todos sabemos que há grupos e que se sobrepõem de maneiras diferentes. Não se trata apenas de identificar as necessidades da comunidade. Dito isto, há necessidades crónicas em grandes populações, em cidades, que são as mesmas. Estão frequentemente relacionadas com a água, acesso à eletricidade, mobilidade, habitação segura, entre outras. Trata-se de reunir a base de evidências para esses desafios.
Qual é o seu papel nesta engrenagem?
Como investigador, temos um papel a desempenhar aqui, na descoberta das soluções e respostas. Como editor chefe da Frontiers and Sustainable Cities, uma publicação periódica, publico estas pesquisas, que fica, acessíveis a qualquer um. Não é preciso pagar para ler os artigos. Qualquer pessoa com acesso à internet pode ler a pesquisa e descobrir todo o tipo de coisas que estão a acontecer nas cidades. Esse é o nosso papel, tornar essas cidades visíveis e dar evidência sobre o que funciona e o que funcionaria nesses diferentes cenários.
O que ainda não consegui que respondesse é: quem paga a conta?
Posso falar da pesquisa e investigação, porque é a parte em que estou mais envolvido. A esmagadora maioria das pesquisas é paga pelos governos e onde é que eles vão buscar o dinheiro? Aos impostos. É você, somos nós, que pagamos pela maior parte das pesquisas. Por isso é absolutamente crítico que a pesquisa seja disponibilizada, as descobertas, os resultados. Fato chocante, muito mais de metade da investigação mundial não tem acesso livre. É preciso pagar quantias enormes para aceder a estas descobertas.
O que é que explica estas restrições?
É apenas a maneira como o sistema evoluiu com os editores. É preciso trabalhar com uma editora para publicar os resultados e a editora cobra dinheiro para as pessoas lerem o que publica. Isso conduziu a uma situação em que até mesmo as pessoas que pagam pela pesquisa têm de pagar novamente, muitas vezes muito, para aceder aos dados.
O público e os cientistas estão a pagar duas vezes pela mesma informação?
Sim, sim. As universidades pagam enormes quantias de dinheiro por ano às editoras para poderem ler o trabalho que os seus investigadores já fizeram. E o governo, ou seja, você, o público, já pagou por isso. Tudo isto está a atrasar a possível transformação do mundo.
A habitação é o tema central da conferência que a RR organiza esta terça-feira, com o Ministro das Infraestruturas e os autarcas de Lisboa e Porto.
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