//Cobrar impostos aos mais ricos para combater a desigualdade, defende economista Susana Peralta

Cobrar impostos aos mais ricos para combater a desigualdade, defende economista Susana Peralta

Só com um aumento de impostos cobrado aos que têm mais rendimentos é que será possível combater crise provocada pela pandemia. A ideia é defendida pela economista Susana Peralta, que lança o livro “Portugal e a Crise do Século – o terramoto da desigualdade”.

À Renascença, a economista considera que a cobrança de impostos aos mais ricos já devia estar a ser feita.

Nesta entrevista diz que o fim das moratórias “vai ser um caos”, sobretudo, no turismo, e lembra que os apoios não podem prolongar-se indefinidamente nem o Governo deve manter as empresas inviáveis, o mesmo que responsabiliza por não ter dado a mão aos endividados.

Critica ainda os planos do executivo para a bazuca europeia, considera o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) uma “manta de retalhos” que não vai pôr o país a crescer e diz que o Plano de Estabilidade não tem sustentação. A professora de Economia da Nova SBE denuncia ainda os impostos encapotados que o ministro das Finanças anda a cobrar, através das cativações, ao mesmo tempo, que afasta a tributação temporária dos mais ricos.

Na última semana ficámos a saber que, na véspera de Mário Centeno anunciar o excedente orçamental, 1 em 5 portugueses era pobre e 60% deles trabalhava. Um cenário que já destaca neste livro. Esta crise é como adubo nestas fragilidades?

É duas coisas. Por um lado, é uma lupa, ou seja, essas fragilidades estavam lá e o que faz é trazê-las à tona da água, elas estavam muito escondidas. Depois, também aduba, na medida em que ataca essas pessoas que já tinham uma posição socioeconómica mais frágil.

Como é que se combate esta pobreza?

Uma das vertentes é apoiar as pessoas diretamente com mais rendimento. Temos programas de combate à pobreza, como o Rendimento Social de Inserção: é o mais importante; são apoios muito curtos, não chega a 200€ por mês por adulto, no máximo, um montante que não é suficiente para as pessoas terem uma vida digna; é temporário, as pessoas estão sujeitas anualmente a burocracias pesadas para verem o apoio renovado; é muito condicional, a pessoa tem de respeitar uma série de condições para ter direito à tal transferência.

Tudo isto, não só não dá dinheiro suficiente como não dá descanso, e as pessoas precisam de paz mental, sem isso não podem investir no seu futuro e no das suas famílias, em formação, ficam encalhadas.

E os que já trabalham?

Mesmo quem trabalha e que tem salário baixo é preciso perceber que o Salário Mínimo não resolve tudo, porque muitas dessas pessoas pobres não têm uma relação com o mercado de trabalho que as permita estar cobertas pelo SMN, ou porque trabalham com recibos verdes, ou porque não trabalham a tempo inteiro. É preciso complementar o rendimento das pessoas.

Para combater a pobreza é preciso ainda políticas setoriais focadas na pequena infância, uma coisa que em Portugal não temos. Não temos uma rede de creches pública ou pré-escolar, não temos visitas domiciliárias para os bebés. É ainda preciso investir na educação.

Acabamos por ir ao encontro de uma expressão que usa e serve de subtítulo a este livro, “o terramoto da desigualdade”, que está a ser alimentado pela crise.

A crise veio agravar a desigualdade porque a maneira como podemos, apesar de tudo, escapar a esta crise, e isso é algo bom, foi o digital e a passagem para o online. Isso é uma maneira de trabalhar que está mais concentrada nas pessoas com maiores níveis de rendimento e maiores níveis de educação. Não quer dizer que não haja pessoas que teletrabalham com rendimentos e níveis de educação mais baixos, como por exemplo os operadores de call center, e não quer dizer que não haja pessoas altamente qualificadas, como os médicos, que continuaram a trabalhar presencialmente durante a crise.

Estatisticamente, e temos o relatório “Portugal, Balanço Social 2020 – um retrato do país e dos efeitos da pandemia” que vem citado no livro, olhamos para a caracterização das profissões e o universo dos trabalhadores portugueses e verificamos que as profissões que são teletrabalhadas estão concentradas no sector financeiro, no sector da comunicação, portanto, em serviços com pessoas mais qualificadas e salários mais elevados. Os sectores mais atingidos pela crise, como o alojamento, a restauração, os transportes, o pequeno comércio, o retalho, são sectores onde há uma grande percentagem de trabalhadores com menor capacidade de teletrabalhar, pelas características das suas profissões, e menores níveis de rendimento e de educação.

Na crise anterior, de 2008-2012, houve todo o advento do turismo, que permitiu precisamente absorver muitas pessoas de menores qualificações e salários mais baixos, porque são sectores que criam emprego que não é de grande qualidade. Tínhamos muita gente que imigrou, pessoas mais jovens. Tudo isso são maneiras de escapar à crise que agora é uma torneira que está fechada, a torneira que está aberta é a do digital, que está concentrada em pessoas de maiores rendimentos e maiores níveis de educação.

“A torneira do turismo está fechada, a que está aberta é a do digital, que está concentrada em pessoas de maiores rendimentos e maiores níveis de educação.”

Quem são os mais afetados pela crise, que pessoas são estas?

Em grande percentagem são jovens. Uma parte substancial dos apoios sociais desta crise surgiram pelo lay-off e a medida proíbe os despedimentos. Portanto, as pessoas que tinham um contrato de trabalho, mais ou menos estável, ficaram bastante protegidas, mas as outras, com contratos temporários, foram quem mais sofreu e são também as mais jovens, pela própria natureza da sua relação com o mercado de trabalho. São pessoas de níveis de educação médios, com ensino secundário.

A crise atinge ainda sectores como a restauração e o alojamento, onde há uma prevalência maior de imigrantes, relativamente à média da economia. Também se vê, na informação do Instituto do Emprego e Formação Profissional, mais mulheres a chegar aos centros de emprego do que homens e, sobretudo, vemos que elas têm bastante mais dificuldade em chegar ao mercado de trabalho ao longo do ano de 2020.

O desemprego é justamente um indicador que tem estado “camuflado”, ainda não conseguimos avaliar o impacto da pandemia?

Não, ainda não. Está completamente congelado.

O layoff proíbe os despedimentos, tal como alguns programas de empréstimos garantidos pelo Estado. Portanto, o que vemos são alguns aumentos, que chegaram a ser durante 2020 40% superiores ao que tinham sido no mesmo mês de 2019, nas pessoas que chegam aos centros de emprego, mas são pessoas que têm contratos temporários. Os que têm contratos permanentes são muito menos, simplesmente porque as empresas, como não podem despedir, ou não renovam os contratos que chegam ao fim do prazo ou contratam menos independentes, os chamados falsos recibos verdes.

Nesta terceira fase de desconfinamento estão a aumentar as empresas que já não abrem portas. Quando é que este desemprego vai começar a evidenciar-se nas estatísticas?

Ainda faltam uns meses. Para já, ainda não sabemos quando vai ser descontinuada a política de lay-offs, chegou a pensar-se que já iríamos para o Apoio à Retoma, mas depois tudo piorou. Enquanto o lay-off não for descontinuado e, sobretudo, enquanto não começarem a vencer as Moratórias, nós não sabemos. Depois é que vamos ver se as empresas têm pernas para andar sozinhas.

Não podemos ter a economia apoiada para sempre no Estado. É importante que haja uma reinvenção da economia. Fazer sobreviver artificialmente uma empresa que não tem de sobreviver é mau, é mau para todos, inclusivamente para as pessoas que lá trabalham. Tem que haver uma descontinuação dos apoios, de uma maneira gradual, para não criar grandes distúrbios na economia. Há medida que formos fazendo essa descontinuação, designadamente nas políticas com maior magnitude no apoio à economia, como o lay-off e as moratórias, vamos ver quais são as empresas que se aguentam sem esse suporte básico de vida. Aí vamos começar a ver os números do desemprego.

Sobre as moratórias, um dos riscos do fim do prazo é o aumento do malparado. No livro até usa a expressão: “uma bomba que pode rebentar com estrondo no nosso bolso”. Mas o Banco de Portugal já afastou esse risco. É um erro minimizar esta situação?

Não, não é um erro. Se o Banco de Portugal usasse essa linguagem que eu usei, seria catastrófico. Havia uma crise de confiança no sistema e depois isso autoalimentava-se. Se as pessoas perdem a confiança, vão ao banco levantar o dinheiro e isso cria o problema, porque descapitaliza os bancos. Não podemos ter isso e, não é por acaso, que a Autoridade Bancária Europeia publica estatísticas por país, mas não publica estatísticas por banco. Não podemos saber qual é banco que tem o maior problema de moratórias, porque vamos todos a correr tirar de lá o dinheiro.

Uma autoridade como o Banco de Portugal tem de ser cuidadosa na maneira como transmite a informação, embora o governador já tenha dito que era preciso pensar em políticas públicas, para continuar a ajudar as empresas. Ele também não veio dizer que estava tudo maravilhoso. Não é assim que interpreto as palavras de Mário Centeno. Não quer dizer que, espero eu, lá nos gabinetes não estejam a trabalhar neste problema, a ver quais são os bancos que estão com maior dificuldade e a pensar em maneiras de obviar ao problema. Agora, há um problema de expectativas a gerir nestes casos de crises bancárias potenciais que podem ser autoalimentados e isso nós não queremos.

Com as moratórias o problema vem de trás, do facto de Portugal ter sido dos países que em percentagem do PIB foi mais cuidadoso na despesa direta e, ao fazê-lo, empurrou as famílias e as empresas, principalmente estas últimas, para os braços das moratórias. Agora o problema está lá.

Como é que nos comparamos com os restantes Estados-membros?

Nós temos em milhares de milhões de euros, tantos créditos em moratórias como a França, que tem uma economia que é dez vezes o tamanho da nossa. Nós, em percentagem do PIB, somos de longe o país da Europa com maiores moratórias. Porquê? Porque o Estado se chegou menos à frente a ajudar diretamente as empresas e as famílias e porque as famílias não têm muitas poupanças e as empresas têm falta de liquidez. Por exemplo, no turismo, por cada 100€ de crédito, há 58€ sob moratória. Portanto, isso vai ser um caos.

Os empresários têm criticado o governo por ter dedicado mais fundos, da bazuca europeia, ao investimento público, em detrimento das empresas. Concorda? O Plano de Recuperação e Resiliência é desequilibrado, como dizem os empresários?

Eu não gosto muito de chamar àquilo (PRR) bazuca, porque aquilo são 6% ou 7% do PIB de 2019, a serem investidos ao longo de vários anos. É um investimento que pode chegar, talvez, a 2% do PIB por ano. É bom, claro, para um país que tem falhado no investimento público e que desde 2012 que está a perder capital público. Mas, chamar-lhe bazuca, não gosto muito desse termo, acho que dá a ideia que é um grande pacote de estímulo, quando, por exemplo, comparado com o que os Estados Unidos ou o Reino Unido estão a gastar é muito pouco.

Em segundo lugar, desde 2015 o nosso investimento público tem sido o parente pobre da nossa execução orçamental. Temos estimativas (o Miguel Faria e Castro já fez essas contas) que desde 2012 o nosso capital público tem estado a diminuir, ou seja, os edifícios do Estado depreciam-se porque não temos investido que chegue, podemos ver isso quando num edifício público está a entrar água, quando um computador não está a funcionar, quando a máquina de TAC está avariada. O que o governo está a tentar fazer com este PRR é cumprir o que estava nos programas dos dois governos e que até agora não foi fazendo, por razões várias.

Não sei muito bem como é que podíamos pôr aquilo (PRR) ao serviço das empresas, podiam criar planos de ajuda para as empresas que consigam fazer a transição verde e a transição digital, etc. O que eu vejo ali é que aquilo é um bocadinho de tudo, é um bocadinho de habitação, é um bocadinho de infraestruturas, é um bocadinho de modernização da administração pública, ou seja, vai ser uma espécie de manta de retalhos e eu não sei se é com aquilo que vamos conseguir pôr o país a crescer. Certamente, não. Aquilo que o governo disse, que íamos estar mais perto da Alemanha, acho altamente improvável que aconteça.

“Temos tantos créditos em moratórias como França, que tem uma economia dez vezes o tamanho da nossa. Porquê? Porque o Estado se chegou menos à frente a ajudar empresas e famílias.”

No Programa de Estabilidade agora apresentado, o governo promete um forte impacto destes fundos no crescimento, num menor espaço de tempo, e já foi criticado pelo Conselho das Finanças Públicas por dois motivos: porque os fundos ainda não estão aprovados e porque não é apresentado nenhum plano de investimento em concreto. Como vê o Programa de Estabilidade?

Isso é outra coisa importante… o dinheiro ainda não chegou e não é automático, ainda tem que ser aprovado em Bruxelas e depois vai haver diferentes programas de financiamento aos quais Portugal vai ter que se candidatar. Portanto, não é nada claro que aquilo chegue, ou todo o montante e para quê. É um bocadinho difícil que essas contas não venham com uma grande margem de erro, na medida em que ainda não sabemos exatamente quais é que são alguns projetos concretos.

Por exemplo, tínhamos os projetos rodoviários que a comissão já disse, e bem, que não eram para serem feitas, porque estamos a fazer um plano de transição energética e estar a investir em infraestruturas rodoviárias é um bocado bizarro. Depois temos o plano de modernização da administração pública, que é fundamental, temos uma Administração Pública muito obsoleta e é um entrave ao desenvolvimento do país, mas é muito difícil quantificar como é que se vai traduzir em crescimento do PIB. Parece-me um exercício bastante arriscado, com uma grande margem de erro.

O Programa de Estabilidade promete ainda reduzir a carga fiscal, quando o FMI apoia a introdução temporário de impostos sobre os mais ricos para pagar a crise, em linha com aquilo que tem defendido. No livro fala em “alargar a base tributária”. Entretanto, o ministro João Leão já afastou este aumento de impostos. Ficou surpreendida?

Eu fico muito surpreendida que um país com os problemas que nós temos de endividamento, temos uma dívida pública que já vai em mais de 130% do PIB, somos um país com grandes níveis de desigualdade, somos um país onde o trabalho não paga, ou seja, onde há muitas pessoas que trabalham e são pobres, somos um dos países da OCDE com a maior percentagem de trabalho temporário (cerca de 22%). Para que servem os impostos? Para irem buscar receita, o que num país tão endividado como o nosso é uma necessidade evidente, e para corrigir estas grandes desigualdades. Ora, num país especialmente desigual, especialmente precário, acho estranho que não queiramos usar esta margem dos impostos.

Quando pensamos do ponto de vista das desigualdades, acho que devíamos começar já a cobrar os impostos para corrigir essas desigualdades, até porque tivemos margens da população que estiveram a pagar esta crise e isso também é imposto. Nós quando dizemos às cabeleireiras, às esteticistas ou aos artistas que não vão trabalhar, estamos a cobrar um imposto. Não passa pelo Orçamento de Estado, não é debatido democraticamente, está escondido, mas está lá.

Do ponto de vista da receita, é verdade que há aqui uma possibilidade de ser melhor endividarmo-nos mais agora, com a esperança de que melhore a nossa recuperação económica e depois doa menos pagar esse imposto no futuro. Mas, aquilo que eu tenho visto da gestão desta crise por parte do governo, também não é propriamente umas mãos largas relativamente a ir buscar dinheiro à dívida para mais tarde cobrar esse imposto com menos dor, numa fase de maior crescimento económico.

Quem é que está agora a ser penalizado?

Esta crise, que nos levou a 7,6% do PIB em 2020, está a ser paga por uma parte da população em que nós, de uma forma não democrática e pouco transparente, estamos a cobrar os impostos que isto nos está a custar: a todas as pessoas que estão com moratórias, pessoas e empresas que atrasaram o pagamento à segurança social e impostos, as que estão com rendimentos baixíssimos que viviam a recibos verdes ou pequenos empresários da área do turismo, pequenos retalhistas, etc. São essas pessoas que estão a pagar esse imposto, que nós preferimos escamotear. Mas isso pode ter custos políticos. Económicos tem, certamente.

Em relação à gestão da dívida… O FMI também admite que Portugal será um campeão em matéria de ajuste orçamental até 2024, sobretudo através da redução da despesa. Podemos antecipar que vêm aí mais cativações?

É evidente! Nós temos um Ministério das Finanças que em 2020 nem sequer executou a despesa que tinha previsto pré-pandemia! Esta equipa das finanças funciona não executando a despesa. O parlamento autoriza a despesa e depois eles não executam uma parte, o que tem o seu mérito porque, de facto, conseguem controlar as contas públicas. Não é o processo orçamental, vamos dizer, mais desenvolvido ou aquele que é preconizado pela OCDE ou por outros organismos internacionais que, por vezes, fazem alguma pressão para termos um processo orçamental com mais descentralização, mais produção de informação e não ser tudo centralizado do Terreiro do Paço, onde cada 50 cêntimos são aprovados com muito detalhe.

É uma forma de gerir o processo orçamental para evitar derrapagens, mas é uma forma que este ano tem imposto custos sociais e económicos elevados a partes substanciais da população. Isso tem custos e também são impostos, mas são impostos que não debatemos, que não lhes chamamos assim, é como se não estivessem lá, mas estão.

E vão continuar?

Claro! Enquanto lá estiver esta equipa, vai ser assim que vai gerir. Como não conseguimos fazer ainda esse investimento num processo orçamental mais no século XXI, uma orçamentação descentralizada e por programas, em que não seja preciso este controlo das contas, este é o melhor que temos. Mas, isso não impede que houvesse mais alguma sensibilidade social que tem faltado, durante este ano e meio, sobretudo tendo em conta que estamos a falar de um governo alinhado à esquerda.

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