É um comboio? É um metro ligeiro? Não, é um autocarro de rodas tapadas. A “operação preliminar” do Sistema de Mobilidade do Mondego começou na passada sexta-feira em Coimbra, gerando alguma confusão sobre o que é este transporte público, cuja operação comercial apenas está prevista “para o último trimestre de 2025” — isto é, não começa antes de outubro, e não há data definida para tal acontecer.
A confusão fica pior quando se junta o facto de o Sistema de Mobilidade do Mondego, um metrobus — ou BRT, acrónimo inglês de “Bus Rapid Transit” —, ser operado por uma empresa chamada Metro Mondego, e servir o traçado do antigo Ramal da Lousã. E piora quando os responsáveis se referem a tudo como “o sistema”, termo que não está errado, mas também não esclarece os utilizadores.
Um ramal que devia ter chegado a Arganil
Para perceber como um sistema de autocarros fica com o nome de metro, é preciso recuar até 1930. Nesse ano, o Ramal da Lousã chegou a Serpins, freguesia da Lousã que ficava assim ligada a Coimbra por comboio.
Era suposto os carris não ficarem por aí. Também em 1930, o Governo do período da ditadura militar aprovou um “plano geral de rede ferroviária”, em que se refere ao Ramal da Lousã (nome que chegou ao século XXI) como Linha de Arganil, entre Coimbra-B e Santa Comba Dão, passando em Miranda, Lousã, Góis, Arganil e Espariz. Daí devia sair a Linha de Gouveia, até Viseu, com paragens em Mangualde, Gouveia, Seia, São Romão e Torrozelo (em Seia). Em Santa Comba Dão, onde já passava a Linha da Beira Alta, começava já a Linha do Dão até Viseu, que devia depois ligar a Foz Tua, na Linha do Douro.
Nenhum dos planos futuros foi concretizado, e o Ramal da Lousã chegou ao século XXI, como muitas outras linhas, em más condições. Nas últimas décadas, os comboios já paravam na estação de Coimbra Parque, na zona do Parque Verde do Mondego, evitando a ligação à estação central de Coimbra — que o comboio tinha de fazer a par dos carros.
Metro Mondego, uma empresa perdida entre autarquias e Estado
Foi o isolamento do Ramal da Lousã que fez surgir, na década de 1990, a ideia de um metro de superfície em Coimbra, e a decisão é tomada em decreto-lei em 1994, pelo Governo de Cavaco Silva. Dois anos depois, já com António Guterres como primeiro-ministro, é constituída a Metro Mondego, com participações da CP, Metro de Lisboa e dos municípios de Coimbra, Lousã e Miranda do Corvo.
As obras foram anunciadas várias vezes, mas não começaram. Nesse vazio, surgiram várias propostas alternativas, como um túnel entre Coimbra Parque e Coimbra-B para permitir os comboios atravessar a cidade sem prejudicar, nem serem prejudicados, por outros meios de transporte.
Chegada a 2000, a Metro Mondego ainda não tinha iniciado nenhuma obra do metro de superfície. Em 2001, “face à ineficácia das bases que sustentavam o projeto” — palavras de uma auditoria do Tribunal de Contas ao projeto em 2011 —, o Estado entrou no capital da empresa, passando a ser accionista maioritário. As eleições autárquicas de 2002, como habitual, trouxeram incerteza e mais propostas ao projeto — num ano de convulsão devido uma colisão entre duas automotoras, que provocou cinco mortos e 11 feridos, e colocou o nível de segurança do Ramal da Lousã sob atenção mediática.
Só em 2005, já com uma concessão de 30 anos do Estado à Metro Mondego, seria lançado o concurso público internacional, já pelo Governo de Pedro Santana Lopes. Contudo, o metro de superfície não chegaria a Serpins, com o percurso entre essa estação e a da Lousã a ser realizado por autocarros.
Receios sobre uso de autocarros surgem
Imediatamente, segundo a auditoria de 2011 do Tribunal de Contas, “as Câmaras Municipais da Lousã e de Miranda do Corvo impediram o prosseguimento do concurso público internacional lançado, em fevereiro de 2005, pela Metro Mondego, para que fosse constituída uma parceria público‐privada para construir e operar o sistema de metro”. No fundo, o concurso foi cancelado ainda antes de existir.
A razão por detrás desse bloqueio era a oposição das duas autarquias “à possibilidade de o transporte público entre a freguesia de Serpins, na Lousã, e Coimbra poder vir a ser realizado por outro modo de transporte que não o metro ligeiro de superfície”.
A então secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino (quando José Sócrates era primeiro-ministro), passou, em 2006, a responsabilidade da construção e operação da primeira fase do projeto para a CP e a REFER, retirando a Metro Mondego do processo. Nesta altura já passavam dez anos da fundação da empresa, o mesmo período de tempo entre a criação do Metro do Porto e a entrada em funcionamento desse sistema — só que Coimbra ainda tinha o velhinho Ramal da Lousã.
Carris trocados por um vazio
Vinham aí mais problemas: para levar a cabo este projeto, CP e REFER teriam de se endividar junto da banca, segundo o Tribunal de Contas. Em fevereiro de 2011, a CP tinha lançado três concursos públicos para comprar material circulante para o que ainda era o Metro do Mondego, mas “sem conseguir habilitar alguma proposta”.
As orientações do Governo em 2006 resultaram num projeto de sistema de metro com duas linhas e 43 quilómetros de extensão. Uma era a Linha da Lousã, entre Serpins e Coimbra-B. Outra era a Linha do Hospital, ligando os Hospitais da Universidade de Coimbra a Coimbra-B. O projeto iria passar para um orçamento de 512 milhões de euros, um aumento de 70% face ao previsto em 2005, e de 176% face ao projeto de 2001.
As obras começaram finalmente em novembro de 2009, executadas pela REFER, para reabilitar o troço entre Serpins e Miranda do Corvo. Esses trabalhos obrigaram a parar os comboios, substituídos pelos familiares serviços rodoviários de substituição, cuja contratação era da responsabilidade da CP.
A crise das dívidas soberanas, que começava então a afetar Portugal, estava prestes a fazer-se sentir no projeto. Foi logo no primeiro Programa de Estabilidade e Crescimento de Sócrates, em fevereiro de 2011, que o Governo “constituiu um grupo de trabalho para revisão do projeto” — e o grupo reviu em baixa o orçamento do projeto, para 455,3 milhões de euros.
Mas as obras já tinham sido suspensas, provocando indignação nos utentes do Ramal da Lousã, que procuraram ir à residência oficial do primeiro-ministro e “oferecer os destroços de madeira, metal e pedra” da linha, dizia o Público.
Em novembro, já com o PSD no Governo, Miguel Relvas anunciou a suspensão do projeto e a potencial extinção da Metro Mondego. No Plano Estratégico dos Transportes 2011-2015, o Executivo de Passos Coelho falava em “rever os pressupostos que estiveram na base das decisões relativas a este projecto, adequando o seu âmbito às possibilidades do País decorrentes da atual conjuntura económico-financeira”.
Projeto convertido após chumbo da Comissão Europeia
Já com a troika fora do país, o mesmo Governo lança a sequela do plano de 2011, o Plano Estratégico dos Transportes e Infraestruturas (PETI 3+) — onde foram definidos os investimentos que se tornariam no prolongado Ferrovia 2020. Esse plano não incluía o Sistema de Mobilidade do Mondego nos investimentos prioritários, mas referia a importância de “estudar, de forma racional e objetiva, outras soluções para a concretização deste projeto”, focando-se em “reduzir significativamente o seu volume de investimento e custos de funcionamento” e, ao mesmo tempo, “uma resposta adequada às necessidades de mobilidade das populações”.
A exclusão do Metro do Mondego dos investimentos prioritários era espelho do que tinha acontecido na negociação dos fundos europeus do Portugal 2020. O projeto chegou a estar previsto como um metro ligeiro de superfície no plano da região Centro, mas foi recusado pela Comissão Europeia por não ser “minimamente sustentável”. Em 2015, Miguel Poiares Maduro, ministro-adjunto e do Desenvolvimento Regional, já falava numa solução “metropolitana rodoviária” para o caso.
Em 2017, o sistema que outrora ia ser o Metro do Mondego passou definitivamente a ser o primeiro projeto de metrobus em Portugal. “Metro do Mondego, afinal, vai ser um autocarro”, disse então o Público.
O estudo do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) e da IP Engenharia usava uma análise de custo-benefício de 2013 a um sistema de metro ligeiro de superfície, argumentando que o regresso da ferrovia pesada, com os comboios da CP, não iria servir destinos no centro de Coimbra como a universidade e os hospitais. Com base no requisito de baixar o investimento inicial, o estudo conclui que “é viável servir o Sistema de Mobilidade do Mondego com um sistema do tipo Metrobus”.
Metade da capacidade de um metro ligeiro
O que é um metrobus? Um sistema desenhado para ter mais capacidade que o autocarro convencional, com veículos a circular em via dedicada e com prioridade em interseções. Muito popular na América Latina, a ideia é misturar a capacidade e velocidade de um metro ligeiro com a flexibilidade e menores custos de um autocarro.
O que atrai governos para este sistema são os custos mais reduzidos. Quanto à capacidade, basta comparar: os autocarros da Metro Mondego têm uma capacidade máxima de 136 passageiros (54 sentados), número que os dois metros ligeiros de superfície do país ultrapassam — os veículos mais recentes da Metro do Porto têm capacidade para 244 pessoas (64 sentadas), enquanto os da Metro Transportes do Sul (em Almada) transportam entre 225 e 300 passageiros (74 sentados).
O sistema operado pela Metro Mondego passou a ter uma extensão de 41 quilómetros, entre Coimbra-B, os Hospitais da Universidade de Coimbra e Serpins, levando ainda ao encerramento da ligação ferroviária entre Coimbra-B e a Estação Nova, no centro da cidade. Esse fim consumou-se a 12 de janeiro deste ano.
Com exceção da ligação aos Hospitais da Universidade, estes autocarros circulam no antigo canal ferroviário do Ramal da Lousã, ficando em via única fora da cidade de Coimbra. Isso significa que os veículos apenas se podem cruzar nas estações e noutras quatro zonas construídas para o efeito, limitando a frequência dos autocarros. Na zona urbana, o intervalo projetado entre autocarros no mesmo sentido em hora de ponta é de cinco minutos.
Em resumo: a Metro Mondego opera o Sistema de Mobilidade do Mondego, constituído por autocarros elétricos num canal dedicado. É um metrobus, como o que continua sem funcionar no Porto, e não um metro.
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