Cristina Fonseca ainda estava a tirar o curso de engenharia no Técnico quando uma pneumonia a atirou para uma cama de hospital, e a deixou entre a vida e a morte. A partir dessa altura, passou a ter as prioridades bem definidas: criar valor, para si e para os outros. Aos 23 anos fundou a Talkdesk com Tiago Paiva e, juntos, levaram a startup de call centers até São Francisco, nos Estados Unidos. Deixou a empresa passado quatro anos, para se dedicar a outros projetos pessoais. No final de 2017, fundou com Stephan Morais, ex-CGD, a Indico Partners, a maior capital de risco privada no país. Em março foi anunciada como membro do conselho de administração da Galp.
Tem saudades do frenesim da Talkdesk? Não se arrependeu de sair da empresa?
Eu raramente me arrependo das minhas escolhas. Foi uma decisão muito consciente. Eu sabia exatamente quais eram os prós e os contras de sair naquela altura. Não me arrependo de todo. Eu gosto imenso de trabalhar e de fazer coisas novas. Facilmente me fascino por qualquer projeto novo que me permita aprender e ter impacto. Hoje em dia, a Indico é um projeto espetacular. Estou a ajudar. Estou a fazer um bocadinho o que estava a fazer na Talkdesk numa fase mais inicial, mas, multiplicado. Dá-me uma satisfação incrível. E, portanto, não me arrependo. Nunca me arrependo.
Entretanto, quando saiu, apontou motivos de cansaço e falta de tempo para a vida pessoal e familiar. Há demasiada pressão nos cargos de topo?
Há. Mas o meu caso em particular foi motivado por um conjunto de outros fatores. Nós fomos para os Estados Unidos e eu tinha 23 anos. Com 23 anos, tive a oportunidade de criar uma empresa tecnológica a partir de São Francisco, que é a terra prometida. Aquilo aconteceu-nos numa fase muito precoce da nossa vida, nós até estávamos preparados apesar de eu achar que não. Mas os americanos são ótimos a mostrar que estão super ocupados. E, de alguma forma, eles imprimiram-nos esta noção de que uma pessoa tinha de trabalhar 24 horas por dia para chegar a qualquer sítio. Eu passei-me a comportar como era suposto. Voltei para Portugal e fazia dois turnos todos os dias. E, a certa altura, percebi que a minha vida não podia ser aquilo durante os próximos 10 anos. Esse foi, um bocadinho, o ponto de partida para eu questionar algumas coisas. Depois há um episódio muito particular da minha vida pessoal – eu tive uma pneumonia super grave durante o curso. Estive nos cuidados intensivos, ligada ao ventilador, quase morri. E prometi a mim própria, quando saí de lá, que ia dar prioridade às coisas que eram importantes na minha vida.
Mas é possível ter as duas? Um cargo de direção à frente de uma startup de uma empresa que está a crescer muito rápido e, ao mesmo tempo, conseguir ter uma vida familiar, pessoal, de saúde, equilibrada, sem estar a trabalhar as 24 horas por dia?
É, tem que ser. Eu acho que a vida, genericamente, não faria sentido se isso não fosse possível. Hoje em dia eu acredito claramente nisso, que é possível dar importância a várias dimensões da vida em paralelo.
Vídeo. “Há start-ups fabricadas” para ir ao Web Summit
A Web Summit em Portugal tem ajudado o ecossistema de startups nacionais ou serve apenas para chamar a atenção do país e serve mais para o turismo, digamos assim, do que para negócios reais?
Eu acho que a Web Summit, do ponto de vista do turismo, do impacto na economia, é espetacular. No ecossistema das startups, não sei se o impacto é tão positivo como se diz. O que acontece é que houve muitos olhos postos em Portugal. Houve esta promoção excessiva dos recursos portuguese, a dizer “nós somos espetaculares e, ainda por cima, baratos.” É uma mensagem que me dói, a mim pessoalmente, porque eu acho em Portugal há muita margem para se fazer tecnologia de ponta. Mas nós temos de alocar esses recursos a fazer coisas interessantes e não com uma série de multinacionais que, de repente, se instalaram em Portugal e abriram prédios inteiros e dizem “estamos a contratar 500 mil engenheiros”. Isso não pode ser benéfico para um ecossistema saudável, que quer lançar negócios e que quer competir no panorama global. Desse ponto de vista não acho que teve um impacto positivo. Acho que teve um impacto positivo no turismo, acho que teve um impacto muito positivo na imagem do país lá fora. Depois volta e meia também vejo startups fabricadas para ir ao Web Summit, que é outra coisa que também me mete alguma confusão. Há esta promoção de que os investidores vêm cá e é preciso ter um produto escalável para se captar investimento. E, portanto, vamos lá fabricar produtos para captar investimento. Isto releva alguma desinformação até, relativamente ao processo de investimento e ao tipo de coisas que os investidores procuram, pelo menos.
Isso não é possível acontecer? Uma startup, de facto, ir à Web Summit e conseguir captar investimento nesse evento?
Não se arranja investimento em eventos como a Web Summit. Ou seja, eu posso conhecer o meu investidor e eu conheço, se calhar, dois ou três casos de empresas que fizeram um contato na Web Summit que depois levou a um investimento. Mas os casos são muito poucos.
Esta ideia de que se vai lá para captar investimento é um slogan errado?
É um slogan totalmente errado. Em cada dia da Web Summit há a feira das startups, se calhar com 100 empresas que têm um stand. Os investidores, tipicamente, quando passam viram o badge ao contrário, que é para ninguém perceber que são investidores – porque senão não conseguem passar. E não é neste ambiente que eu vou conhecer a próxima startup para eu investir. Não é? Nós até temos um processo bastante aberto e respondemos a toda a gente. Mas, no final do dia, os nossos potenciais investimentos acabam por ser de alguém que nos indicou. Portanto, esta noção de ir buscar startups assim num lago não é a forma – há exceções – mas esta não é a regra.
Recomendam às vossas startups para irem à Web Summit ou não?
Nós recomendamos para ir à parte boa do Web Summit. Porque o que muita gente não sabe é que há uma série de eventos paralelos, altamente exclusivos, que decorrem nessa altura. Por exemplo, há uma conferência paralela chamada “Forum”. É a conferência privada dos oradores. E obviamente que osoradores são pessoas espetaculares. Essas nós recomendamos aos nossos fundadores. Mas aí eu consigo ter uma conversa produtiva com alguém que é o suprassumo de alguma área e que, se calhar, me consegue adicionar valor real. Mas não é ali, numa conversa de corredor de cinco minutos, sobretudo num evento com 50 mil pessoas que as coisas vão acontecer. Pelo menos com a previsibilidade que às vezes nos tentam imprimir que a Web Summit nos traz.
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