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Daniel Traça é licenciado em Economia e doutorado na Columbia University (Nova Iorque), foi professor no INSEAD (França e Singapura) e na Solvay Brussels School (Bélgica). Professor catedrático de economia na Nova School of Business and Economics (Nova SBE), e diretor daquela instituição desde 2015.
Tivemos eleições há uma semana e uma surpreendente maioria absoluta do PS. Esta estabilidade para quatro anos será fundamental na recuperação do país?
Esta estabilidade é importante, sim, sobretudo por ser na continuidade, o que implica não recomeçar do zero. Mas tem de ser vista não só do ponto de vista político – de termos as mesmas pessoas lá durante quatro anos – mas com três elementos fundamentais. Em primeiro lugar, a aplicação do PRR, que terá uma accountability enorme. Quem desenhou as políticas é quem vai implementá-las e será responsável também pelos resultados.
É uma responsabilização a que o governo não pode fugir.
Exato, fica muito concreto. Outra questão é a estabilidade das políticas para os investidores: que quem está a pensar investir aqui saiba que as políticas estão definidas, vão ser aquelas e que pensamos nelas a médio prazo. E a terceira é a estabilidade ideológica, que não existiu durante os últimos anos, em que tudo era negociado e mudava conforme o Orçamento. Agora teremos estabilidade a esse nível e isso permite mais coerência na definição das políticas públicas. Isto é uma enorme oportunidade para Portugal. E daqui a uns anos poderemos avaliar os resultados, porque são seis anos mais estes quatro, o que trará possibilidade de atribuir responsabilidades – que é coisa que às vezes falta em Portugal.
Poderá o PS, agora sem amarras a PCP e BE, virar-se mais para as empresas, estimular a iniciativa privada? Isso é desejável?
Esse é um elemento fundamental. Nós temos um grande desafio porque pensamos sempre a médio prazo. Agora a prioridade é recuperar da pandemia, se o crescimento é 5% ou mais… esses objetivos, sendo importantes, não podem ser os únicos. Portugal já vivia uma situação difícil antes da pandemia, na medida em que não havia perspetivas a longo prazo. A produtividade – a capacidade de crescer a longo prazo – crescia muito pouco até relativamente ao resto dos países europeus. Nós agora crescemos 4,8% porque antes não crescemos; não podemos andar nessa lógica. Temos de adotar uma lógica de crescimento de longo prazo, sustentável. Estas dificuldades existem desde o princípio do século e agravaram-se na segunda década, portanto o que quisermos fazer com as empresas tem de ser olhando não na lógica da recuperação imediata, mas na do que o país quer para o futuro.
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E em que é que isso impacta as políticas para as empresas?
Elas não devem ser vistas do ponto de vista de dar mais ou menos apoios e a quem, mas do que será o impacto na capacidade de essas empresas conseguirem aumentar a produtividade. É essa a forma de conseguir subir os salários. Nós tivemos um crescimento médio de 1,5% nos últimos dez anos. É muito pouco, quando comparamos com Irlanda, Letónia, Estónia, que cresceram 4% ao ano. Temos de ter esse objetivo de fazer crescer a produtividade porque só isso vai permitir fazer crescer salários, passar para os 3% ou 4%. O trabalho a fazer com as empresas é nesse sentido.
O que é preciso, então?
Atuar nos custos de contexto. Sabemos quais são os problemas – é preciso reformar a justiça, reformar o Estado, haver mais investimento, que tem sido muito baixo nestes seis anos e é preciso condições para atrair investimento português e estrangeiro. É preciso mais estabilidade. Os diagnósticos estão todos feitos e agora temos oportunidade de tomar medidas. O governo tem o longo prazo para pensar nisso e é importante fazer, sair da lógica dos dois anos e pensar o que vamos fazer para deixar uma semente de uma década 2020-2030 que seja diferente da de 2000-2010 e da de 2010-2020. É este o grande desafio e a oportunidade é agora.
O controlo das contas públicas é ainda mais fundamental agora que se antecipa o fim dos programas de compra de dívida do BCE e o regresso à subida dos juros?
A subida dos números da inflação – e o que conta para o BCE é a inflação da Europa, que foi de 5% no ano passado e em janeiro os números não acalmaram – faz prever alguma mudança na política do BCE, com impacto nos juros já neste ano. O BCE, que tem estado a comprar dívida dos Estados e vai mantendo os juros da dívida pública baixos, vai parar rapidamente. As compras de dívida vão começar a ser menores e já se vê nesse sentido que a taxa de juro da dívida portuguesa a dez anos começa a dar sinais. E vai haver subida dos juros ainda neste ano, no mais longo prazo. Isto não afetará diretamente o défice porque o IGCP fez uma boa gestão da sua carteira de dívida pública, portanto não haverá grande volume de dívida a ser renegociada nos próximos dois anos. Mas a prazo terá implicações. Para termos uma ideia, se tivéssemos uma taxa de dívida pública de 100% do PIB – e é muito maior – cada 1% nos juros é mais 1% no défice. As contas públicas têm de ser equilibradas e o controlo da dívida tem de ser feito, para que a subida de juros que vai acontecer se reflita tão pouco quanto possível no défice, sob pena de perdermos margem para os apoios sociais. E a partir de 2023/24, não só as compras de dívida vão reduzir-se como os juros vão aumentar, o que vai refletir-se nas contas das pessoas, juros bancários, crédito à habitação…
Mas há setores ainda a precisarem de apoios…
A gestão do Orçamento terá de prosseguir apoios em setores muito afetados pela pandemia – não só pela questão social, que é muito importante, mas porque esses são setores muito relevantes para a economia portuguesa. O turismo, os restaurantes, a cultura, Portugal vai ser sempre um país em que grande parte do PIB passa por atrair estrangeiros para desfrutarem do país. Portanto, há aqui um desafio social mas também um de manter estes setores vivos para continuarem a alimentar o PIB.
E o que é preciso fazer?
É preciso que os apoios que continuem a ser dados sejam não só para manter as coisas vivas mas numa lógica de apoiar a transformação para o futuro. Não é só recuperar da pandemia, é preparar estes setores para que na década 20-30 o turismo, a cultura, a restauração sejam setores com novas oportunidades e dinâmicas, produtos mais modernos para alavancar e criar valor. Isto permite-nos dar um apoio importante do ponto de vista social mas também repensar a economia para um futuro com mais crescimento e oportunidades.
E tendo em conta os números da pandemia hoje – o pico de casos não tem correspondência nos internamentos e mortes – já devíamos estar a levantar todas as restrições, como a Dinamarca?
Do ponto de vista económico, quanto mais cedo melhor, mais rapidamente a economia retoma. Anunciou-se nesta semana que já não é preciso teste para entrar em Portugal e isso terá impacto direto na chegada de turistas e no retomar da economia. Mas é muito importante que isto se faça sem solavancos. A economia funciona muito mal em ambiente de instabilidade, portanto que se liberalize esse processo da vida em sociedade mas que se faça com a certeza de que não vamos daqui a dois meses voltar atrás.
E tem sido feito aos solavancos?
Houve uma altura, no princípio de 2020, em que as coias não correram tão bem e isso teve uma consequência: se até início de 2020 a pandemia era um fator de competitividade muito interessante para Portugal, era seguro vir para cá, a seguir a marca Portugal sofreu. Temos de ter cuidado e tomar as medidas de forma a salvaguardar que não andemos a ziguezaguear e a destruir princípios de marca que são muito difíceis de construir e se destroem facilmente com esses erros. Mas tirando esse período, acho que as coisas têm estado a ser bem geridas.
Há outros perigos a espreitar, da inflação à crise logística, dos chips, das matérias-primas, de talento… Qual poderá ser o maior inimigo da nossa recuperação?
Há os fatores conjunturais de curto, médio e longo prazo. O maior risco a curto prazo é a pandemia não ficar resolvida. A médio prazo é a subida da inflação, acompanhada por uma subida de juros, quer da dívida pública quer do BCE. Num país como o nosso, em que Estado, pessoas e empresas estão muito endividados, isso criaria uma enorme pressão sobre a economia – e convém que quem gere dívida, quer pública quer de empresas, comece a preparar-se para o fim dos juros baixos que temos desde 2011. Num cenário positivo, a inflação subirá lentamente – estas taxas de 5% não se mantêm, reduzem-se em 2022 e ainda mais em 2023; é o cenário hoje apontado nas previsões e se assim for será um processo gradual de aumento das taxas de juro, não muito negativo para o país. Num cenário pior, o risco de a inflação se descontrolar – vê-se essa preocupação nos EUA – porque há uma crise de petróleo ou de matérias-primas, e entrar no dia-a-dia das pessoas trará consequências piores, que têm que ver com o BCE ter de ser mais agressivo para controlar a inflação, a que a Alemanha tem uma aversão cultural.
E no longo prazo?
O grande risco – que agora se dissolveu um pouco – é que a estabilidade política não seja capaz de gerar o tipo de mudanças na economia portuguesa que reponham uma dinâmica de crescimento de longo prazo. Se o governo nestes quatro anos não demonstrar esta vontade de fazer de Portugal um tigre na Europa, que os investidores aplaudiram, vamos ter um desanimar do que tem feito mexer a economia. Basta ver a quantidade de estrangeiros que vêm para Lisboa, gastam, consomem serviços. Se todo este mundo perder o otimismo sobre Portugal, a economia vai-se ressentir. Portanto é preciso um modelo de futuro para a economia portuguesa, que seja coerente, previsível, e que todos estejamos alinhados. É preciso assegurar as tais reformas que todos sabemos quais são e nunca ninguém quer fazer. E agora há condições para serem feitas.
E que impacto podem ter esses riscos em empresas que gastaram a almofada e já estão a pagar as contas normais e a dívida acumulada destes dois anos, sem a receita ter recuperado?
Isso é verdade em alguns setores, mas os indicadores mostram que, com todos os apoios que houve nestes dois anos, a liquidez existe. A situação é difícil em certas empresas e setores mas isso não é transversal.
Não espera falências em massa.
As moratórias terminaram e não se vê sentimento de que vem aí uma enorme crise. Os apoios podiam ter sido muito melhores, sobretudo ter chegado muito mais depressa às empresas, e há muitas ainda em dificuldades, especialmente as mais pequenas, mas não vejo que a economia vá implodir agora. O mais difícil já passou. Algumas ainda antes da pandemia já estavam sobre-endividadas, porque os juros eram muito baixos, e vão ter de começar a gerir essas dívidas de forma mais eficiente. Os CFO têm de começar a pensar já que há aqui um risco que tem de ser gerido. É um desafio estratégico.
A transformação energética tem sido particularmente ambiciosa em Portugal e está a provocar escaladas de preços que põem também em risco a atividade económica. Devia haver algum tipo de intervenção do Estado para controlar esses custos ou não deve dar-se passos atrás nos objetivos de descarbonização?
Esta escalada de preços vem dos combustíveis fósseis e sobretudo porque não se fez muito investimento necessário, devido à ideia de que se ia descarbonizar tudo de repente. Havendo potencial para rentabilidade, vai começar a haver investimento na produção de petróleo e os preços vão reagir. A médio prazo, espera-se que haja algum investimento na produção porque há rentabilidade por causa dos preços. Mas temos de estar todos conscientes que a solução está do lado das renováveis. Há um debate interessante que aqui não se tem muito que é o nuclear…
Faz sentido falar em nuclear quando a Alemanha acaba de fechar todas as centrais?
Não tenho posição de fundo sobre o tema, é muito técnico, mas os franceses usam-na.
E a Alemanha importa de França.
Sim, e se calhar valia a pena debater aqui. Mas não é esse o ponto. Nós fizemos uma enorme aposta nas eólicas, que foi um sucesso para o país. Podemos seguir por aí. O importante é que não se deve abrandar esse processo. Daqui a 10/15 anos, os países e empresas de mais sucesso serão os que forem agora mais longe e mais depressa nisto. Uma lógica de curto prazo pode fazer-nos perder esse comboio. Há dez anos, ninguém queria gastar dinheiro no digital e o que aconteceu foi que a revolução avançou e quem fez a transição chegou muito mais longe e tem hoje modelos de negócio de incrível sucesso, enquanto os outros ficaram para trás. A dinâmica é essa: os primeiros a chegar são os que vão ganhar o futuro. Isso tem de estar na cabeça dos decisores. Avançar rapidamente na lógica da descarbonização, saber como isso se faz melhor nas políticas públicas e as próprias empresas olharem para as suas estruturas e fazerem-no vai assegurar não só que os custos são mais baixos como que vão estar no topo da competitividade daqui a 10 anos.
Portugal cresceu 4,9% em 2021, mas vínhamos de quebras sem precedentes. O Fórum para a Competitividade aponta o regresso a valores pré-pandemia só em 2028. Pode demorar tanto?
Repor os níveis vai demorar tempo, mas o tema não é esse. Discutir se crescemos 5% neste ano não é o que importa. Temos de recuperar tão depressa quanto possível da pandemia, mas o que é preciso é pensar como se faz isso e como se põe depois o país numa dinâmica de crescimento sustentado. Com esta maioria absoluta em continuidade, o OE está feito, a aplicação do PRR está pronta a acontecer. O que realmente deve ser debatido é 2023, 2024, 2025, 2026. É isso que os jovens querem saber, o que vai ser o futuro, como é que os salários vão aumentar, como podem fazer uma carreira aqui. E como é que vamos reter esses jovens, é no que o país deve pensar.
Nessa lógica, que reformas têm então de ser prioritárias?
As dificuldades de contexto das empresas – do ponto de vista da justiça, da administração pública – têm de ser resolvidas. É uma questão de vitalidade, já nem é só económica, é da democracia. A questão da instabilidade da legislação laboral penso que com este governo irá acalmar, irá manter-se a forma de fazer as coisas e isso traz previsibilidade e estabilidade a um tema importante para as empresas. A fiscalidade é o tema que importa pensar. Temos uma das fiscalidades mais intensas da OCDE sobre as empresas e isso é um enorme obstáculo ao investimento. É preciso coragem política para trabalhar Estado e justiça, estabilidade da legislação laboral e olhar para os impostos. O PS adotou uma postura muito crítica sobre a diminuição de impostos sobre as empresas, mas acho que havia espaço para fazê-lo e com potencial impacto no investimento.
E seria prioritário esse alívio fiscal nas empresas ou nas famílias?
É muito importante trabalhar as empresas, tem de se fazer isso, pelo menos testar medidas e perceber os impactos no investimento. É importante trabalhar a fiscalidade das empresas de forma a estimular o investimento. No IRS, sobretudo em alguns níveis, também, sobretudo os mais altos. Portugal está a perder muito talento, pessoas com salários um pouco mais altos, que se estão a ir embora porque os salários em Portugal são muito baixos. E vamos ter de olhar para essa dinâmica não só na lógica social – cuja dinâmica tem de ser respeitada, aliviar o peso a famílias com mais dificuldades – mas na de competitividade do IRS. Quanto mais talento, português e estrangeiro, retivermos no país, mais se dinamiza a economia, mais e aumenta a produtividade e mais se é capaz de subir os salários de todos, incluindo os mais baixos. O IRS tem uma dinâmica social importante, mas há um lado de competitividade da economia que passa por aí: assegurar que não estamos a taxar demasiado o talento e a fazê-lo sair de Portugal. Portanto diria que é uma combinação de fatores: IRC, IRS social para os mais desfavorecidos mas também para as classes mais altas, que estão a pensar sair porque o IRS é muito pesado nos níveis mais altos de rendimentos.
E rever os escalões faz sentido?
Essa medida foi desenhada num contexto ainda de Orçamento ligado às dinâmicas políticas da altura e a essa lógica social deve continuar… mas há que olhar além do curto prazo. Não é o OE deste ano que faz a diferença, é olhar para a dinâmica estável lá à frente, planeada e sustentada. É dizer que se ficarem o IRS pode ser maior neste ano mas há uma visão de solução a dois ou três anos. Essas decisões económicas – ficar ou não, investir ou não – não se fazem a olhar para um ano, mas a cinco ou seis, e é nessa lógica que temos de pensar. E tendo agora esta estabilidade devemos fazê-lo.
O PRR pode ter aqui um papel. Houve enorme adesão do privado às Agendas Mobilizadoras… As grandes apostas de obras públicas previstas, incluindo caminhos-de-ferro, fazem sentido?
As obras como o aeroporto e a ferrovia fazem sentido, mas temos de parar de falar e começar a fazer. Passamos demasiado tempo a falar destas coisas. É um problema do regime. Tem de se decidir e avançar. Quanto às Agendas, é um ótimo sinal que as empresas estejam a aderir, porque esta visão de futuro, transformadora da economia portuguesa, faz sentido. Mas tenho receio que se gaste o dinheiro e depois logo se vê. A minha maior crítica ao PRR é essa: vamos entregar o dinheiro e o que é que virá em troca, qual é o compromisso de resultados que vamos de obter e quem será responsáveis, quais são os indicadores de objetivos? Quem vai ser responsabilizado se não forem atingidos? Há muito a ideia de os fundos desaparecerem em aplicações alternativas, mas o nosso problema fundamental já não é esse. Não é questão de fiscalização. É usar o dinheiro para o que se destinava mas isso não produzir resultados. O PRR precisava de foco a esse nível: que resultados se espera, que compromisso nos comprometemos entregar e depois perceber se foram cumpridos e responsabilizar se não forem entregues – a empresa, quem gere os fundos e o governo que desenhou o programa.
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