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Da história do “enorme” aumento de impostos à “estratégia” para as reuniões com a troika, das crises no Governo de Passos Coelho à pressão que vinha de “todos os lados”, Tiago Espinhaço Gomes, antigo assessor do ministro das Finanças Vítor Gaspar, conta como viveu alguns episódios atribulados da história política recente e descreve como é estar na primeira linha da criação do Orçamento do Estado.
Tudo começou quando José Sócrates pede ajuda à troika. Passos Coelho ganha as eleições legislativas de junho de 2011 e Tiago Espinhaço Gomes, licenciado em Economia pela Faculdade do Porto, recebe um convite “inesperado” para integrar o gabinete do novo ministro das Finanças, Vítor Gaspar.
Troca o trabalho de consultor numa das maiores empresas mundiais do setor pelo “desafio” de ser assessor “na equipa que dá apoio direto ao ministro” que terá por missão enfrentar a crise e implementar medidas draconianas de austeridade, a condição para o empréstimo internacional de 78 mil milhões de euros.
O economista, atualmente com 32 anos, sabia perfeitamente ao que ia: “medidas duras, mas necessárias na época. A grande maioria eram públicas, tinham sido negociadas, as condições do empréstimo da troika estavam definidas e toda a gente tinha essa noção. Se não tinha, era porque não queria ter. Estava claro publicamente, para todos, que iam ser dois ou três anos difíceis”.
A história de um aumento de impostos que passou a “enorme”
Verão de 2012. O Governo de Passos Coelho desiste da polémica baixa da taxa social única (TSU) para as empresas, após as maiores manifestações dos últimos anos em Portugal.
Era preciso encontrar medidas alternativas e apresentá-las ao país. Foi o que fez Vítor Gaspar. Nos primeiros dias de outubro, convocou uma conferência de imprensa para dar as más notícias: vinha aí um “enorme aumento de impostos”, admitiu o ministro no seu ritmo discursivo pausado.
Tiago Espinhaço Gomes conta a história da inclusão da palavra “enorme” no discurso de Vítor Gaspar que deixou muitos portugueses em choque e a fazer contas à vida.
“Às 9h00 da manhã, com pouquíssimas horas de sono, tínhamos o discurso praticamente preparado. Vítor Gaspar fez um telefonema e, quando voltou, disse que era para pôr lá uma palavrinha antes do aumento de impostos, que era ‘enorme’.”
Mesmo o assessor, que estava habituado ao estilo frontal do ministro, não queria acreditar: “na altura, fiquei surpreendido: ‘querem mesmo que esta palavra entre?’, perguntou.
“E sim, naturalmente, que isto tinha sido articulado com quem de direito, muito na lógica de vamos dizer a verdade, em vez de tentar vir com floreados ou dizer: ‘não é bem aquilo que vocês estão a dizer que é’ e alguém nomear o aumento de impostos com outras palavras. Mais vale sermos nós a dizer uma que é verdadeira. Essa palavra estava no discurso mais do que uma vez.“Não foi um improviso, foi um acrescento de última hora e propositado”, sublinha.
Vítor Gaspar, o “jogador de xadrez”
Inteligente, tecnicamente competente, um “jogador de xadrez” que via várias jogadas à frente e “media muito bem as palavras”, madrugador com um sentido de humor britânico. É assim que Tiago Espinhaço Gomes define o antigo ministro das Finanças Vítor Gaspar, atualmente a trabalhar no Fundo Monetário Internacional (FMI).
“Eu gostei imenso de trabalhar com ele. Diria que há duas características que me marcaram: uma foi o sentido de humor, mas a primeira é a competência técnica. Sem dúvida, indiscutivelmente, foi uma das pessoas mais inteligentes que conheci até hoje. Tem uma capacidade muito grande e um raciocínio muito rápido para conseguir justificar as suas opiniões”, recorda.
Considerado um tecnocrata sem experiência na política, Gaspar vestiu a pele de ministro, adaptou-se e tornou-se uma das figuras mais carismáticas e importantes no Governo de coligação PSD/CDS.
“Nas comissões parlamentares, ele conseguia facilmente pegar em diferentes argumentos, combiná-los, desmontá-los à frente de toda a gente, mas aliava isto a um sentido de humor que eu achava muito engraçado, um humor um pouquinho Inglês, muito inteligente, que às vezes era percepcionado como arrogância, mas que claramente não era. Todos nos lembramos do episódio do gato do deputado Honório Novo”, refere Tiago Espinhaço Gomes.
O economista admite que o Governo PSD/CDS pode ter ficado colado a uma imagem de “insensibilidade social”, mas considera que o responsável pelas Finanças “é como um CFO [diretor financeiro] de uma empresa, está ali para tomar decisões difíceis, para pôr travão, não está para fazer política setorial nem para distribuir benesses”. O ministro das Finanças “garantir que as contas do Estado estão em ordem” e “se tiver muitos amigos, é porque não está a fazer as coisas bem”.
Troika a passar fome, “sapateado” e a estratégia do cansaço
Tiago Espinhaço Gomes esteve no Governo até ao final de 2013, participou em três Orçamentos e nove exames regulares da troika.
Recorda as visitas dos técnicos do FMI, Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia como “um processo um pouco chato, mas tinha de ser feito. Eles estavam a cumprir o seu papel”: garantir que o ajustamento era feito dois terços do lado da despesa e um da receita, sem medidas dependentes de variáveis que não era possível controlar.
Nas reuniões técnicas em que participou, por vezes, era preciso distrair a troika, fazer algum “sapateado, como muitas vezes, carinhosamente, dizíamos”.
O objetivo, explica, era “ganhar tempo” para, “nos bastidores, continuarmos a refazer os cálculos para trazer coisas mais sólidas para as reuniões seguintes”.
“Eles estão cá duas semanas, não têm tempo para tudo e, portanto, nós, se os conseguirmos fazer perder tempo com coisas pouco úteis, conseguimos, no fundo, ganhar vantagem numa negociação.”
Outra estratégia passava por “não servir refeições ou servir refeições muito leves, também para ganhar vantagem negocial”.
“Comíamos antes das reuniões. Ia sempre almoçar ou jantar, ia de barriga cheia, mas sabia que eles tinham estado lá a manhã, ou a tarde inteira, cheios de fome. Quando se entra para uma negociação e a outra parte já está muito cansada de todo o dia, e ainda por cima está com fome, a negociação vai ser, seguramente, mais fácil”, relata Tiago Espinhaço Gomes.
Quando os peritos internacionais perguntavam se não iria ser servida comida, a resposta era “não”. “‘Temos ordem da troika para cortar custos. É austeridade, não é? Estamos a ser consistentes com aquilo que vocês nos dizem’. Isto também com algum humor e eles tinham que aceitar”.
Manobras de bastidores à parte, na soma de tudo, Tiago acredita que Portugal conseguiu conquistar “confiança e credibilidade” junto da troika. E fechou o programa no tempo previsto, frisa.
A demissão surpresa de Gaspar e Portas “irrevogável”
Vítor Gaspar demitiu-se a 1 de setembro de 2013. Poucos sabiam da decisão do ministro das Finanças.
“Fomos convocados para uma reunião com o ministro dentro de uma hora. Pensámos que aquilo não era normal. Continuámos a trabalhar e, de repente, começam a cair notificações no telemóvel a dizer: ‘Ministro Vítor Gaspar demite-se’ e ficámos surpreendidos, ninguém estava a contar. Foi algo que foi mantido em segredo – e bem, como as coisas têm de ser. Mantido entre ele e o primeiro-ministro, um círculo muito pequeno de gente”, conta o assessor.
Tiago Espinhaço Gomes acabou por ser convidado pela nova ministra Maria Luís Albuquerque para continuar na equipa das Finanças, mas a turbulência perseguia o Governo.
No dia seguinte à saída de Vítor Gaspar, o ministro Paulo Portas apresenta a sua famosa “demissão irrevogável”.
“Estávamos a entrar nos carros para a tomada de posse [de Maria Luís Albuquerque] e sabe-se disto. Na altura, o secretário de Estado Paulo Núncio, do CDS, não sabia muito bem o que havia de fazer: ‘vou tomar posse, não vou tomar posse’. Foi tomar posse na mesma, mas não apareceu ninguém do CDS: os ministros Mota Soares e Assunção Cristas, e os respetivos secretários de Estado, não foram à tomada de posse”, recorda.
O Governo de coligação podia cair a qualquer momento, mas, numa jogada surpreendente, o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, rejeita a demissão de Paulo Portas e este acaba por recuar.
“Foi uma coisa altamente surreal, aquilo parecia um filme”, admite Tiago Espinhaço Gomes.
Orçamento. Um processo “pesado, complexo e kafkiano”
Numa altura do ano em que o Governo se prepara para entregar o Orçamento do Estado para 2019, Tiago Espinhaço Gomes relata a sua experiência sobre a elaboração do caderno de encargos de um país.
O consultor descreve a elaboração de um Orçamento como um “processo extremamente complexo, moroso e, às vezes, até kafkiano porque é muito detalhado”. E envolve centenas de pessoas de vários ministérios e entidades públicas.
“É um exercício em que tem de se detalhar muitas despesas e há muitos organismos. Se compararmos a nível internacional, os países mais desenvolvidos têm menos grau de detalhe e menos organismos. Temos um processo muito pesado”, aponta.
Pressão de “todos os lados”
Uma das consequências de trabalhar no Ministério das Finanças é aprender a lidar com “a pressão que vinha de todos os lados”, quer fosse da população descontente, das exigências da troika ou dos outros ministros que não queriam cortes.
Tiago Espinhaço Gomes explica que era, praticamente, impossível desligar do trabalho e teve de aprender a lidar com isso.
“Ligas a televisão e estão a dar as medidas de austeridade, a troika, os impostos. Mudas de canal, passa para um debate e estão falar do Governo, daquele que se calhar devia sair e do outro que está em risco. Se formos tomar café com os amigos, volta e meia já se está a falar da crise e da troika. Com a família, ainda por cima: os meus pais são funcionários públicos, na altura a minha namorada também era, os pais dela também. Às tantas, estou rodeado de gente que está a sofrer diretamente os cortes. Não tinha descanso”, recorda Tiago Espinhaço Gomes, que voltou à consultadoria e espera que Portugal nunca mais volte a ter de passar por um plano de resgate financeiro.
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