//Empresas. Um universo em que (quase) ninguém paga a horas

Empresas. Um universo em que (quase) ninguém paga a horas

Mais de dois terços das empresas em Portugal – 67,5% – paga aos fornecedores com atrasos até 30 dias. Segundo os dados da consultora D&D, o fenómeno global está a adensar-se e se em 2007, 21,7% das pagava no prazo acordado, agora apenas uma em cada oito, 14,7%, o faz.

Mas há, ainda assim, uma notícia boa. Na última década, a percentagem de empresas que pagam com 30 a 90 dias de atraso e a mais de três meses diminuiu. Pouco, mas diminuiu.

Procurar razões para que em Portugal o sector empresarial tenha tanta dificuldade em pagar a tempo e horas esbarra, normalmente, com na cultura instituída, endémica, que se resume num provérbio, segundo o líder da Confederação de Comércio em Portugal, João Vieira Lopes: “Pagar e morrer quanto mais tarde melhor.”

Olhar para os números do resto da Europa ajuda a perceber como este fenómeno é especialmente penalizador para Portugal. Na Europa, 41,7% paga dentro dos prazos acordados e na Dinamarca, o país que tem o tecido empresarial mais cumpridor esta cifra chega a 88,4%.

Porque é que é assim?

O contabilista Nuno Domingues, que trabalha com muitas PME, também toca na tecla da cultura, mas acrescenta-lhe o mau funcionamento do sistema judicial e do sistema fiscal.

Domingues explica que, no passado, o facto de se ficar a dever era algo socialmente penalizado e que as pessoas não se sentiam bem consigo próprias. Nos dia de hoje, segundo o contabilista, não é uma situação problemática.

Nuno Domingues critica a prática. “Há sempre algum oportunismo, porque não podemos deixar de perceber que o atraso de pagamento é sempre uma forma de financiamento.”

Para o presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE), Jorge Líbano Monteiro, uma parte do que está a acontecer explica-se pelo facto de as pessoas “não terem a noção do impacto negativo que o atraso de pagamento tem na economia e na empresa também”.

“Há uma ideia instalada na cultura empresarial em Portugal que acha que é indiferente o prazo de pagamento”, resume.

Mas há consequências. Um estudo que a ACEGE desenvolveu em parceria com o economista Augusto Mateus chegou à conclusão de que um atraso generalizado de 12 dias criava 70 mil desempregados num total de cinco anos.

“Isto prova o que já sentimos no dia a dia, o facto de as empresas não pagarem a tempo e horas cria um ciclo vicioso que afeta toda a economia e acaba por prejudicar a própria empresa”, afirma Líbano Monteiro, que cita um estudo europeu que responsabiliza o atraso de pagamentos por 25% das mortes das empresas no continente.

Há quem acrescente outras justificações, como o presidente Confederação de Comércio em Portugal, João Vieira Lopes: “A banca dá muito crédito ao consumo, mas, em relação às empresas, tem-se retraído. Não é fácil as empresas gerirem a tesouraria com a banca, como aconteceu há uns anos.”

Vieira Lopes, que tem no currículo passagens por multinacionais norte-americanas no setor industrial, conta que já nessa altura tinha muitas dificuldades em explicar porque é que em Portugal a regra era pagar fora de horas. Esse era o ponto que abria muitas das reuniões com a “casa-mãe”.

“Só se pagava quando o ‘stock’ se esgotava, porque aí era preciso pagar, senão não se fazia nova encomenda”, ilustra.

Para o administrador do grupo Parfois, Sérgio Marques, os rácios de capital próprio e de tesouraria depauperados fazem com que, muitas vezes, as empresas tomem decisões tendo por base não os atrasos nos pagamentos, mas por saber se a empresa vai ou não pagar.

Um problema mais grave nas grandes empresas

Outro dos dados de maior relevo do estudo da D&B é que são as grandes empresas que pagam pior, no que diz respeito ao cumprimento dos prazos. São menos de 7%, as que pagam a horas.

O contabilista Nuno Domingues, acredita que esta é mais uma manifestação do “abuso de posição dominante que acontece em tantas áreas da nossa sociedade, em que quem pode impõe as suas condições”.

“As grandes superfícies, por exemplo, praticam descontos, prazos médios de pagamento de tal forma extensos e criam uma dependência aos seus fornecedores, que apenas lhes resta aceitar se querem estar no mercado”, reitera.

A dificuldade de mudar resulta de os mais pequenos não terem para onde se virar. “Seja porque do ponto de vista estratégico não é do seu interesse pôr em causa o relacionamento com esse cliente, ou porque se quiserem avançar para tribunal a morosidade é tanta, preferem gerir da melhor forma possível para manter o negócio ativo”, explica.

João Vieira Lopes concorda que há um problema na relação das grandes empresas com as pequenas. E dá um exemplo: “No mercado alimentar, por exemplo, há casos de prepotência. Muitas empresas estão dependentes delas para o negócio, e as grandes empresas aproveitam-se disso. Mas é muito difícil de provar”, explica.

Um problema que mata

Vieira Lopes não tem dúvidas que os atrasos nos pagamentos é um fenómeno que leva à falência empresas. “Mata, mata”, repete.

O contabilista Nuno Domingues considera que o fecho das empresas por esta razão é uma evidência como se viu no setor da construção civil depois da grande crise.

“O Estado tem a obrigação tutelar para que a economia funcione bem, sendo o primeiro a exigir os pagamentos a tempo e horas, como é o caso dos impostos”, aponta.

Sérgio Marques, líder da Parfois, acredita que aplicar juros de mora não é solução porque “se gerava uma complicação muito grande caso se aplicasse”.

O gestor crê que “só em relações formais, em que não há proximidade é que se fazem essas contas”.

Como se poderá resolver?

Todos concordam que a resolução deste problema não será fácil. Jorge Líbano Monteiro aponta, no entanto, quatro soluções.

A primeira, é de que cada empresa deve exigir pagamentos a tempo e horas tal como exige qualidade nos produtos que entrega e recebe.

Outra ideia, seria cumprir uma legislação que há cinco anos permite que as empresas cobrem juros sobre atrasos de pagamentos. “Era importante que não tivessem medo de pôr em prática o que lhes é exigido”, defende.

O Estado também poderia dar uma ajuda através de políticas públicas. Uma solução seria a “majoração nos concursos, ao nível dos programas existentes para perceber que vale a pena pagar a horas”.

Por fim, Líbano Monteiro defende um acompanhamento mais profissional da tesouraria.

Nuno Domingues soma-lhe a criação de tribunais que resolvam, especificamente, as situações de faturas que estejam em mora e possam ser reclamadas “ou, então, uma moldura fiscal, que permita deduzir o IVA liquidado em fatura, que entrassem a crédito na vida fiscal da empresa”, explica.

“Mas isso não acontece”, remata.

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