//Este ano “não vai acontecer” recuperação do poder de compra

Este ano “não vai acontecer” recuperação do poder de compra

Perguntas concretas. Concorda com o aumento salarial decidido este ano pelo Governo para a Função Pública, 0,9%, quando a inflação ronda os 8%?

O crescimento dos custos dos bens alimentares e da energia vão representar sempre, para todos no mundo, uma perda de poder de compra. Nós temos que aceitar, que todos nós, sem exceção no mundo todo, vamos ter uma perda de poder de compra por aquilo que se passa neste momento do ponto de vista internacional, por causa da questão da guerra, por causa do preço da energia, por aí fora. por isso é que o preço da energia é problemático! Tem que haver um ajustamento real de todos, em Portugal e pela Europa.

Há o risco de que esta subida de preços, se se começar a refletir de uma forma muito generalizada nos salários, possa criar aqui uma espiral inflacionista, que é o que não se quer.

O próprio governador do Banco de Portugal já veio dizer que há uma margem até 2% para aumentos salariais, que não causaria pressão inflacionista.

Um aumento de 2% é o aumento normal da inflação…

Mas o governo tinha margem para um aumento mais generoso dos salários?

Se em vez de 0,9 fosse 2%… Não sou eu que o digo, é o governador do banco Central que o diz. Não era 1, passavam a ser 2%. Mas era isso que iria fazer a diferença?

Se ele o diz, eu tenho todas as razões para estar de acordo. Agora, percebamos uma coisa: se as pessoas têm a expectativa, e este é o ponto mais importante, que de repente, com 8% de inflação, que é como estamos este mês, vamos ter 8% de alinhamento dos salários de uma forma transversal na economia portuguesa, não pode acontecer. Porque vai desencadear uma espiral inflacionista; porque a subida dos produtos agrícolas e do petróleo, na realidade, vão exigir um ajustamento real de todos nós; porque é preciso atenção redobrado ao défice público, há aqui uma pressão que se vai criar, que é o aumento da despesa com juros à medida que a inflação e as taxas de juro sobem.

Vamos viver com a realidade que temos, assumindo que não vai haver um ajustamento real nas condições de vida, em Portugal e pelo mundo todo.

Falou da pressão sobre a energia. Os cortes fiscais nos combustíveis deviam ser substituídos por apoios diretos às famílias e empresas viáveis, como já defendeu, por exemplo, o FMI e a OCDE?

Essas entidades têm aqui uma questão sempre importante que é: não vale a pena dar subsídios a quem não precisa, até porque, como eu estava a dizer, o governo vai estar e está já sob pressão financeira, porque os juros vão aumentar. É preciso encontrar formas de poupar. Um apoio mais focado em quem tem mais necessidade, que sofre mais, faria sentido.

Agora, tudo isso tem uma dimensão operacional grande. Ou seja, para montar um sistema em que se identifique quem são estas pessoas, em que se faz o dinheiro lá chegar depressa, e nós lembramos o que é que se passou nos subsídios durante a covid, provavelmente, quando o dinheiro lá chegasse já estas pessoas tinham sofrido e andávamos todos aqui a penalizar o governo por causa disso.

Aqui a escolha é entre um sistema que, se calhar, não é tão eficaz do ponto de vista do foco que tem, mas tem a vantagem de que, do ponto de vista da sua operacionalização, é muito mais fácil, está ali todos os dias e nós temos logo a vantagem de sentir os preços a não subirem tanto como subiriam de outra forma.

Tem-se discutido muito o potencial do Porto de Sines, como porta de entrada do gás na Europa. Até que ponto é que o país pode beneficiar desta infraestrura? Porque o abastecimento por petroleiros também encarece o preço do gás.

A grande lição dos últimos três meses é que, às vezes, o mais barato sai caro. A estratégia alemã de “engagement” com a Rússia, de fazer o pipeline de gás que iria baixar os custos e assegurar o abastecimento saiu-lhes muito caro, porque hoje estamos dependentes de um país, e de outros provavelmente, com os quais não podemos ter relações de confiança.

A solução de Sines faz sentido numa lógica geoestratégica de diminuir o risco de, por um lado, depender demasiado do gás de países onde as instituições são mais frágeis e onde, do ponto de vista geopolítico, não podemos depender. Não são aliados. Do ponto de vista português, é interessante, porque nós temos o potencial de desenvolver uma série de atividades, quer a jusante quer a montante da cadeia de valor, que pode potenciar a viabilidade do país. Há infraestrutura que vai ter que se construir, durante alguns anos, a par de outras indústrias que se podem fazer surgir.

Portugal deve, aproveitando o contexto e em parceria com Espanha, porque isto será Sines e outros portos em Espanha, tentar fazer com que Europa perceba que depender de gás que vem simplesmente da Argélia ou da Rússia são riscos que a Europa não deve assumir.

Onde é que deve ser investido o dinheiro do PRR, para garantir a melhor taxa de aproveitamento e eficiência possível, para garantir que o dinheiro não é desperdiçado?

Acho que a atual forma de implementação tem alguns déficits. Há duas questões que me preocupam. Por exemplo, vamos fazer um investimento enorme na formação do setor administrativo do Estado, que eu acho interessante. Agora, gerir recursos humanos dando-lhes formação, mas sem alterar as carreiras e toda a forma de incentivos para que sejam verdadeiramente capazes de atrair e reter as melhores pessoas, motivá-las e inspirá-las, acho que é um problema. Eu estou na administração pública, vejo a dificuldade que tenho em motivar aqueles que querem fazer mais.

Estar a investir na formação e depois não reformar e não pôr a funcionar os sistemas mais modernos de gestão de pessoas, para que a administração pública se torne muito mais eficiente e muito mais capaz de entregar valor aos cidadãos, não sei se é a melhor forma de investir.

O segundo tema é que eu gostava que toda esta forma de investimento do PRR tivesse muito claro os objetivos. O que é vai representar sucesso? Formar pessoas não é sucesso.

Estatisticamente?

Com indicadores! Queremos aumentar a eficiência na administração pública de X para Y. Queremos produzir X pessoas que sejam capazes de produzir isto para o país.

O que se ouve falar é em executar. Executar é gastar! Eu preferia que o foco fosse muito mais em investir e tirar proveitos naquilo que é o desenvolvimento do país. Depois de executar, quais é que vão ser os resultados? Esta abordagem era mais interessante e eu gostava que houvesse mais compromisso de quem está a executar dos resultados que quer atingir e de quem é que é responsável por esses resultados, para depois no fim podermos avaliar e dizer se esta pessoa fez bem o seu trabalho ou não.

Por outro lado, focou-se muito na administração pública, em investimentos já previstos. Gostava que houvesse uma lógica mais de transformação do setor. Não uma lógica de apoio aos privados, em Portugal os privados também estão sempre um bocadinho à espera de receber apoios, mas uma lógica de facilitar e premiar os privados com mais vontade de transformarem, de fazerem essas reformas.

Numa lógica de vamos dar dinheiro aos privados, mas só recebem de facto se entregarem: se exportarem mais X, se inovarem mais Y. O PRR tinha sido uma boa oportunidade para se criar esta cultura em Portugal. Nós focamo-nos demasiado nos recursos e não nos objetivos.

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