Engenheira de formação, especializada em sistemas e computadores, Fátima Carioca é também doutorada em Gestão. Fez carreira em empresas tecnológicas e é diretora da AESE, a primeira escola de negócios em Portugal, a operar desde há 38 anos.
É professora de fator humano na organização e coordena projetos na área de gestão de pessoas, conciliação família/trabalho e responsabilidade social. Estas áreas têm sido parentes pobres na gestão, ficam muitas vezes fora da agenda. Alguma coisa mudou nos últimos anos?
Sim, na maioria das situações. Estes temas têm sido discretos na agenda das empresas e dos Estados, mas têm cada vez mais o seu peso e impacto na vida de pessoas e organizações e nesse sentido, na última década, algum caminho tem sido feito. Não chegámos ao destino, mas há caminho feito. É importante definirmos à partida quem são os protagonistas e quando falamos em conciliação falamos essencialmente em vários âmbitos da vida pessoal em que todos nos realizamos. No trabalho, e portanto a empresa é um deles, enquanto cidadãos, logo o Estado também, na família, que é outro. Mas a realidade é que o protagonista, verdadeiramente, somos nós próprios.
Apesar de o enfoque estar nas empresas, os gestores estão preocupados com o fator humano?
Os bons sim. E estão, embora saibam que na maioria das vezes não resolvem os problemas de conciliação. Há um estudo que levamos a caso [de estudo] há três anos com a Everis e é interessante que na maioria das perguntas em que falamos de Recursos Humanos (RH) vêm perguntas sobre conciliação, e estas são normalmente dissonantes das restantes políticas de RH.
Em que sentido?
No sentido em que quem responde ao prémio das melhores empresas para trabalhar são empresas que por si acreditam nas suas politicas e na maioria das vezes os colaboradores reconhecem essa bondade de politicas. No caso da conciliação é diferente, porque não chega essa bondade. É verdade que é necessária a cumplicidade da família, uma referência-padrão dada pelas leis e normativa do Estado, mas também é verdade que as empresas atuam como facilitadoras dessa conciliação. Mas no final tenho de ser eu a saber o que quero para a minha vida. Daí a dissonância, a empresa é um grande facilitador e é importante que tenha essas políticas – de flexibilidade, crescimento e desenvolvimento pessoal, por exemplo – mas no final a solução é sempre pessoal.
Falou de Estado, vamos falar de governo e este chegou a apresentar um programa de conciliação de vida profissional, pessoal e familiar que alarga licenças parentais e abonos de família. Não é suficiente?
Esse programa, como disse, é mais um passo no caminho, no sentido em que alarga a temática da escolha pessoal acerca das licenças e outras questões como a flexibilidade. Tão importante como ter feito a lei foi chamar empresas que se comprometam em pelo menos trabalhar com a lei e levá-la – e às práticas – mais longe.
Do que vê, dos gestores que ensina, o que lhe parece que inibe mais essa decisão pessoal? O receio de ser mal visto, o receio de não contar com o apoio da família?
O que sistematicamente aparece nos estudos da AESE tem que ver com serem penalizados na carreira por tomarem decisões como o alargar de uma licença, mesmo que seja uma sem vencimento. Esse é um dos fatores apontados como razão para não aceder a políticas que a empresa disponibiliza. Outro é a relação com a chefia direta. Muitas das avaliações de desempenho ainda se fundamentam muito no presencialismo. E depois há aquela máxima, longe da vista, longe do coração… Numa das multinacionais com presença em Portugal, há uns anos, na Ericsson, a nível internacional disseram que havia meio dia por semana em que as pessoas trabalhariam fora da empresa para se irem habituando a um regime em que pudessem escolher e flexibilizar-se. E Portugal foi dos que ficaram pior nessa medida – e no ano seguinte tiveram de impô-la, porque se fosse opcional as pessoas não iam para casa.
MULHERES NAS EMPRESAS
No mundo empresarial, a igualdade de género tem dado passos, mas lentos. Como vê as quotas nas empresas cotadas e nas públicas, já em vigor?
Há uns anos, eu era contra as quotas. Mudei de opinião. Era contra por princípio, porque as pessoas devem estar nos lugares por mérito, por compromisso com o projeto e a missão da empresa, estar lá por direito. Mas muitas vezes é preciso trilhar um caminho e esse tem de ser pedagógico. E se eu não puser na mesa a obrigatoriedade de olhar também para as senhoras, eu vou buscar entre pares tipicamente masculinos quem eu quero ter na mesa da administração… é natural e humano, porque os lugares de administração são essencialmente de confiança, tenho de confiar em quem está à volta. Além do mérito é necessária uma relação de confiança, a esse nível, e isso é com os pares que eu conheço. Impor esse caminho transitório nos conselhos de administração será positivo e se Deus quiser há de passar.
E até lá, deveria ser mais abrangente que em cotadas e públicas?
O papel pedagógico é destas, que são as que têm mais visibilidade. Por isso verificamos também noutras empresas, desde as menores até aos grandes grupos, que a medida também é olhada da mesma forma – tentam perceber que é importante e desejável haver essa riqueza e complementaridade nas administrações.
Mas sente nas pequenas empresas, nas familiares, uma evolução nesse sentido?
É um caminho que acaba por ser empurrar de baixo para cima. E o que acontece é que em muitas equipas já não é exceção haver essa diversidade, serem ricas em termos de género.
Mas tipicamente não eram as filhas dos fundadores que ficavam à frente das empresas.
Exato, mas neste último programa de empresas familiares que levámos à AESE, começado em janeiro e em que temos várias gerações em sala, há muitas filhas. Porque naturalmente ganharam o seu lugar. Há séculos para ultrapassar… desde a regra do morgadio. Foi muito à custa de alguma prova de competência e confiança que as filhas foram ganhando espaço nessas empresas familiares, mas nas outras empresas passa-se o mesmo: a forma de gerir as equipas, a competência técnica demonstrada pelas mulheres, é a maior vantagem competitiva que elas têm para um dia se sentarem num conselho de administração.
Essas novas gerações de filhas e filhos de fundadores estarão a resolver finalmente a falta de gestão profissional, a profissionalizar as empresas familiares?
Acho que até certo ponto é um mito a forma como olhamos para a gestão das empresas familiares. Temos muito a ideia de que têm essa dimensão e não é verdade. Há grupos muito grandes de empresas familiares, quer em Portugal quer fora. Tenho aqui dados que apontam para 27% das empresas cotadas a nível europeu serem familiares, e falamos da elite das elites. Não podiam deixar de ter gestão profissional.
E as outras?
Também tendem cada vez mais a entender que embora tenham especificidades próprias das empresas familiares, é necessário tratar a empresa como empresa e a família como família. E uma empresa trata-se de forma profissional e a família de forma familiar. Isso é que é o encanto de trabalhar numa empresa familiar, ter essas duas instituições que se sobrepõem sem se misturarem.
DIGITALIZAÇÃO
Outro grande desafio para as empresas é a digitalização. Que ameaças e oportunidades vê aqui?
O que esta digitalização traz de novo é a velocidade com que evolui, a escala a que se dá e a profundidade do impacto, das consequências dessa digitalização. Isso leva a uma revolução social que tem que ver com a alteração da forma como vivemos, como trabalhamos, como nos relacionamos uns com os outros. É verdade que vai destruir muitos empregos – essa é uma das consequências negativas – mas também vão aparecer muitos novos.
Vídeo: Digitalização “leva uma revolução social”
Quanto a isso a sua balança é mais otimista ou pessimista?
Não consigo dizer. E gostava de apontar para outras componentes. É que muitos vão ficar desempregados, mas não é linear quem. Ou seja, em todos os tipos de emprego haverá os que se manterão, desde os básicos aos que são supostamente mais de conhecimento tecnológico e intelectual. É provável que o trabalho mais sistemático dos advogados desapareça, mas se calhar o de um cirurgião mantém-se… É provável que um trabalho rotineiro básico desapareça, mas que quem nos atende no restaurante não. Portanto, nem consigo dizer com que padrão vão desaparecer ou aparecer empregos. Mas será sempre uma fase transitória, como todas as que passaram. O professor Luís Cabral, professor da NYStan e da AESE, costuma recordar que, nos anos 1980, houve milhares de empregos desaparecidos na agricultura portuguesa e que hoje fazem outras coisas. Aliás, deu-se uma renovação do olhar para a agricultura. Claro que todos os ajustamentos são dolorosos – e este não fugirá à regra. Eu não conheço o futuro, mas a resposta terá de ser, como noutras ocasiões, integrada, abrangente e normalmente tem de envolver todos os atores e geografias.
ECONOMIA
Falemos da economia portuguesa. Como a avalia neste momento? Os alertas de uma nova crise acumulam-se…
É verdade que os alertas fazem surgir nuvens negras, tipicamente devidos à desaceleração da economia. É difícil olhar a economia portuguesa sem olhar a mundial, principalmente porque a economia é sistémica e portanto permeável ao que acontece lá fora. E se eu olhar para o exterior, diria que o mais importante que vai afetar-nos será a incerteza política – desde logo na Europa, onde estamos inseridos, mas também a relacionada com as eleições da América Latina e situações em África e no Médio Oriente. Além de outros grandes players: os EUA e a China. O clima de guerra comercial afeta sempre, a desaceleração da China afeta-nos. O FMI estimava que a desaceleração de 1% na economia chinesa levaria a que as mais evoluídas – incluindo a nossa – teriam uma quebra de 0,3 p.p. no crescimento. Nas emergentes era o dobro. Essa desaceleração está presente, mas há outra face da economia, que é termos uma economia verdadeiramente global e transversal. E que tem que ver com todos os negócios que nascem em plataforma e que nascem em centros de poder efetivo em termos de negócio, que não tem território propriamente dito. E essa está a crescer bastante. Portanto, o contrabalançar entre as duas economias vai ser interessante de observar.
Vídeo: Falta audácia na economia portuguesa
E olhando para dentro de casa, o que nos falta para enfrentar esses desafios? Produtividade, competitividade, talento?
Falta algum rasgo de audácia. Para não ser um cheque completamente em branco, necessita de financiamento e investimento. Ideias surgem, mas têm de ser sustentadas em investimento. Por isso é que muitas vezes esse binómio entre investimento e a audácia de criar novos negócios falta, porque falta essa audácia em Portugal.
Mas isso respeita também à banca? O governo criticou os bancos por não concederem crédito suficiente… a banca diz que até tem aumentado. O problema também está aí?
Eu não me refiro só à banca, quando falo de investimento falo do estrangeiro.
Mas também passa pela banca?
Em termos de sistema, o crédito dado pela banca é um fator importante, mas tem de ser visto como parte de um todo. Que a prioridade em termos nacionais podiam ser as empresas, além dos particulares – que têm essa prioridade no crédito bancário – seria interessante e sem dúvida um grande dinamizador.
TALENTO
Em Portugal, as empresas, sobretudo as tecnológicas, têm estado numa guerra pelo crédito mas também pelo talento. Fala-se dessa preocupação em todo o lado. Há talento suficiente? E que competências procuram, afinal, as nossas empresas?
Sim, há talento suficiente. Porque nós continuamos a crescer mundialmente e o talento existe. Outra coisa é se existe em Portugal, mas neste momento não podemos dar-nos ao luxo de escolher só em Portugal.
Vídeo: Talento. “Não nos podemos dar ao luxo de escolher apenas em Portugal”
Há vários setores que estão carentes de mão-de-obra especializada…
É verdade. Acho que há várias perguntas que devemos colocar-nos. A primeira, como disse, é: que talento procuramos. E as empresas portuguesas tipicamente procuram pessoas familiarizadas com a tecnologia, que tenham características analíticas para ler os dados e reconhecer padrões, que sejam criativas nas soluções e tenham capacidade de ir aprendendo ao longo da vida. E que tenham uma atitude otimista. O que é isso? É uma atitude de, com base na realidade, acreditar que é possível chegar a uma solução.
Agora, onde é que encontramos os talentos? Eu diria que em todo o lado, estão à distância de um clique. Ainda no outro dia um participante num programa da alta direção de empresas da AESE me dizia que quando fez um post no LinkedIn os primeiros a responder vinham da Europa de Leste. Depois há a questão de os acolher e integrar. O talento, verdadeiramente, está disponível a nível mundial.
Outra questão ainda é como o retemos. Muitas vezes, os talentos estão disponíveis, conseguimos contratá-los, mas não retê-los. E aí a questão passa por geri-los de forma diferente. Isso tem que ver com as gerações com que trabalhamos. É um novo paradigma de gestão que tem como base não a tarefa e a presença em si mas a missão, a participação e a flexibilidade. Tem de ser uma missão de empresa inclusivamente com sentido, ter um bom ambiente na empresa, uma liderança presente, próxima, que os escute e apoie as suas ideias. E depois uma estrutura facilitadora composta por políticas que permitam – e voltamos à primeira pergunta da entrevista – a realização da pessoa não apenas no ambiente profissional (que é importante, em termos do trabalho que faz), mas também nos outros âmbitos que lhe são caros. Desde logo, a família, mas outros, como o voluntariado. Há muitos rapazes e raparigas que entram nas empresas e dizem que o fazem e querem continuar a fazer. Isso é um novo paradigma para os nossos gestores. Acho que a própria relação laboral tem de se reinventar.
Agora se me pergunta o que procuram as pessoas que vêm ter à AESE… aqui vêm muitos executivos de alta direção, chefes de projetos, de equipa. E para esses acredito que é importante a liderança do futuro, uma certa familiaridade com a tecnologia, e em especial uma grande responsabilidade na sua utilização. Ser possível tudo não significa que eu possa fazer tudo ou a minha empresa possa integrar todo o tipo de tecnologia, ou até usá-la para qualquer fim. E também a continuação da capacidade para liderar as pessoas, como papel fundamental do líder.
E as escolas de negócios estão a formar esses talentos de que o mercado precisa? A competição nas escolas em Portugal aumentou muito, mas durante anos os empresários diziam que a escola estava muito longe do mundo real.
Falando da AESE, fomos sempre uma escola muito enraizada no tecido empresarial, é uma das características importantes da nossa escola ter muitos dos professores enraizados no mundo empresarial.
Mas quando olha o setor, as outras escolas, houve evolução?
Penso que as empresas que procuram as escolas de negócios procurarão esse enraizamento. A AESE é assim, enraizada no mundo – por isso tem uma característica internacional, faz parte de uma rede de 20 e tal escolas, da Ásia à América. Portanto, há essa visão holística e integrada do mundo que é importante, assim como o enraizamento no mundo empresarial. O que fizemos de há uns tempos para cá foi pensar muito concretamente que tipo de competências quereríamos dar a quem passa por lá. Para nós, é fundamental dar alguma familiaridade com as tecnologias, como integrá-las, como reinventar o meu negócio aproveitando as tecnologias e essas ferramentas imprescindíveis. Por outro lado, ter uma grande literacia em termos de data, de análise de big data, e até purgar os dados de forma a entender o que são causas e efeitos, quais são as tendências, padrões e exceções, mais uma vez para articular com o meu modelo de negócio. E uma terceira vertente que tem que ver com humanidade – que é o que temos diferente em relação às máquinas. Perceber como se motiva pessoas, como se gere pessoas, o que é a pessoa, em si, é fundamental.
São essas também as principais preocupações dos decisores que passam pela AESE?
Os decisores que se aproximam e vivem os nossos programas intensamente percebem a integração destas três vertentes e percebem que aí estará o diferenciador da sua empresa. E isso, em termos dos modelos de negócio – competitividade -, mas também em termos de atração de talento e de sustentabilidade a longo prazo.
Onde é que a AESE quer estar daqui a cinco ou dez anos?
Estar presente no tecido empresarial português, portanto continuar a responder a Portugal e aos empresários portugueses. Mas também não perder ou ganhar ainda mais a característica internacional. Portanto, responder também aos grandes problemas mundiais, em parceria com outras escolas da rede IESE, que comungamos.
Essa estratégia faz-se pelo convite de professores internacionais ou pela admissão de alunos estrangeiros?
Das duas maneiras. Na exposição de alunos portugueses a ambientes internacionais – por exemplo, o nosso programa de alta direção tem uma visita de trabalho, uma imersão no mundo académico e empresarial de Xangai; os nossos MBA têm imersões na Índia e nos EUA, etc. – mas também na cativação de alunos internacionais para as nossas turmas e outras iniciativas da escola, de forma a dar um cariz internacional e a tornar a discussão internacional. E ainda se dá com a troca de professores: a exposição dos nossos a escolas internacionais e o convite de professores estrangeiros à AESE – como aliás sempre aconteceu, até porque nascemos ligados ao IESE Business School e os nossos primeiros professores eram estrangeiros. Estamos também a preparar um novo programa de raiz internacional. Esta estratégia de globalizar a AESE é fundamental, complementando e dando mundo à prioridade de sempre dar resposta aos empresários portugueses.
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