//Filipe quer casa, mas ninguém lha constrói

Filipe quer casa, mas ninguém lha constrói

Foram e não voltaram

Em Portugal, existe uma narrativa que pulula de boca em boca, que por vezes aparece em novelas e que por isso sobrevive no imaginário popular, que dita “não se pode confiar em empreiteiros”, que “é preciso andar sempre em cima deles” para que prazos e orçamentos sejam cumpridos. Este tipo de afirmações, numa possível interpretação benigna, são expressões de frustração, porventura devido a más experiências. Afinal, existirá bem pelo qual alguém seja mais zeloso do que o cuidado pela a própria casa?

O problema destas frases feitas é que, na larga maioria dos casos, encobrem estereótipos de classe. O setor da construção raramente tem quem fale por ele na praça pública, o que leva a um desconhecimento das suas dinâmicas, e não possui pedigree intelectual. Não é à toa que ainda há quem use como insulto: “Vai trabalhar para as obras.” Ou que crianças sejam apoquentadas com a premissa: “Estuda, se não vais trabalhar para as obras.”

Quando o empreiteiro disse a Filipe Castro que havia muita falta de mão de obra e que, devido à crise, muitos trabalhadores haviam emigrado, não o estava a enganar. Aliás, estava a traçar um retrato bastante sucinto e preciso do setor da construção, neste momento, em Portugal.

“Não tenho dúvidas nenhumas que para pequenas empreitadas é muito difícil encontrar hoje empresas e pessoas. E nas empresas de maior dimensão os preços estão de facto a subir, porque as empresas podem escolher”, atesta Ricardo Pedrosa Gomes, presidente da Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços (AECOPS), à Renascença.

Com a “oferta a dominar a procura”, “se uma pessoa quer hoje fazer uma moradia a pensar ela custa o mesmo que ela imaginou há um ano, não vai encontrar uma empresa, porque se calhar essa empresa conseguiu encontrar hoje um prédio para fazer a pagarem-lhe preços que são muito mais interessantes, do que se concentrar na moradia”, avisa ainda.

Segundo o representante da AECOPS, “curiosamente, o problema [da falta de mão de obra] foi atenuado pela pandemia”, com o abrandamento relativo do crescimento da construção.

E a realidade que o país atravessa hoje está profundamente relacionada com a crise financeira de 2008, em que o mercado imobiliário foi um dos mais afetados. Na época, muitas empresas de construção fecharam portas, “desapareceram”; outras “passaram a ter uma componente maioritária, quase exclusiva, de atividade internacional”.

A retoma da construção, nos últimos cinco anos, foi alavancada em muito “investimento estrangeiro”, “já que o investimento público esteve sempre muito controlado e propositadamente retardado”. Em 2018 e 2019, “começou-se logo a sentir uma pressão grande de falta de mão de obra”. E as empresas portuguesas já não tinham capacidade para dar resposta.

“Por um lado, as empresas ainda continuavam a ter bastante atividade internacional. Por outro, os trabalhadores que, por mote próprio, se tinham virado para os mercados europeus, e de facto tinham garantia de trabalho aí, não querem voltar, pois o diferencial salarial é muito significativo entre os países do norte da europa e Portugal”, explica.

Chegados a 2021, o problema da falta de mão de obra ressurgiu ainda com maiores dimensões. Tal como Portugal, muitos países têm nos seus Programas de Recuperação e Resiliência (PRR), “uma componente de atividade do setor da construção”. Portanto emigrantes portugueses que estejam lá a trabalhar vão continuar por lá. “Os salários deles vão aumentar lá. E o gap para Portugal tornará ainda mais difícil conseguir que eles retornem aqui. Portanto, o tal problema estrutural veio para ficar”, diz.

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