Com o retalho fechado um pouco por toda a Europa, os cancelamentos e adiamentos de encomendas não se fizeram esperar e muitas são as empresas têxteis e de vestuário que estão já a recorrer ao lay-off por falta de encomendas. Mas na Temasa – Têxtil do Marco, SA, trabalho é o que não falta. Não para os clientes habituais – dos seis milhões de euros que fatura, o grupo Sonae, através da Zippy e da Mo, é responsável por metade -, mas para abastecer os hospitais de batas, cogulas (uma espécie de capuz que cobre a cabeça e o pescoço), cobre-botas e fatos de proteção integral. Produtos desenvolvidos e certificados com o apoio do Citeve (Centro Tecnológico Têxtil e Vestuário). “Foi uma correria diária para conseguir desenvolver os produtos e testá-los nos hospitais ao mesmo tempo que os estávamos a certificar”, admite o recém-proprietário da Temasa.
Andreas Falley comprou a empresa do Marco de Canaveses no início do ano, à Sonae, e não poupa elogios aos seus 80 funcionários, a maioria dos quais mulheres, como é habitual nas fábricas de confeções. “Todas as minhas operárias estão felizes e contentes por estarem a ajudar em vez de estarem em casa, e têm sido incansáveis. Temos feito horas extra, tem sido uma azáfama”, explica. Por dia, a Temasa produz, em média, quatro ou cinco mil peças e vai procurando fazer entregas semanais repartidas pelos muitos hospitais com urgência nestes materiais. E tem já perspetivas de poder vir a fornecer estes equipamentos para unidades hospitalares em França.
À partida, quando o mundo regressar ao normal e a covid-19 estiver controlada, regressará aos seus clientes habituais na área da moda. O que não significa que esta área de negócios não pudesse ser uma aposta para muitas têxteis nacionais, admite Andreas Falley. “Tudo dependerá das opções de futuro das instâncias nacionais. Temos uma indústria com dimensão e com capacidade para suprir essas necessidades, como estamos a assistir. O problema é que hoje todos os artigos de proteção individual na saúde são descartáveis e comprados a preços extremamente baixos na Ásia. Portugal tem esta capacidade de desenvolver produtos tecnológicos com alguma resistência à lavagem e que, por isso, podem ser reutilizados. Ficam mais caros na compra, mas esse acréscimo depois dilui-se nas várias utilizações. E num mundo em que se pretende reduzir o lixo e contribuir para a sustentabilidade do planeta, o descartável é o oposto disto tudo”, argumenta.
No calçado, também muitas são as empresas com encomendas canceladas e que optaram por contribuir para o combate à covid-19 desenvolvendo novos produtos, designadamente máscaras e viseiras para oferecer. A AMF – Safety Shoes, um dos maiores produtores europeus de calçado de segurança, decidiu reconverter um produto que já tinha, uma socas de jardim que vendia para Israel, num artigo para a área da saúde, higienizável e esterilizável na máquina de lavar.
Em duas semanas já produziu e ofereceu, “seguramente, cinco ou seis mil pares” a hospitais, centros de saúde e lares de terceira idade dos concelhos de Guimarães e Vila do Conde, onde as duas unidades do grupo estão sediadas, mas os pedidos começam a chegar “de todo o país”. E há já uma oportunidade para vender cem mil pares para o mercado norte-americano.
É uma nova frente de negócios que se abre no grupo, que continua a operar normalmente. Pelo menos no que ao calçado de segurança diz respeito, que vende sob a marca ToWorkFor. “Temos um ou outro adiamento, mas não temos cancelamentos. Aliás, estes três meses foram o nosso melhor trimestre de sempre”, garante Albano Fernandes, CEO da AMF. Já o mesmo não se pode dizer da Aloft, a unidade de solas técnicas e de calçado injetado do grupo, e que faz, por exemplo, galochas para a Decathlon. Foi essa capacidade instalada que foi colocada ao serviço do novo artigo, as washy clogs.
O sucesso deste novo levou ao desenvolvimento de uma coleção de socas ToWorkFor, para lançamento em maio, desenvolvidas e certificadas para os funcionários das indústrias alimentares, de eletrónica, de restauração e para a área médica. São um produto em poliuretano, de gama superior às washy clogs, em pvc, e que despertaram já o interesse de clientes na Alemanha e em Inglaterra. “Estamos a trabalhar em pleno e sem previsões de qualquer necessidade de um lay-off. Pelo menos na ToWorkFor”, admite Albano Fernandes, que não esconde a sua preocupação com uma possível falha no abastecimento de matérias-primas.
“As nossas gáspeas vêm da Índia e se não abrirem as fronteiras, vamos ter um problema. Reforçámos os stocks em fevereiro, mas bloquearam-nos alguns barcos à saída. Estamos a tentar trazê-las de avião, mas não está fácil”, admite. A AMF, em Guimarães, dá emprego a 150 pessoas, a Aloft a 100 em Vila do Conde. Em conjunto, faturam mais de 18 milhões de euros. “Esperava, neste ano, ultrapassar os 20 milhões, mas agora já não sei. Não arrisco dizer nada. Abril ainda vai ser um mês interessante, maio já não sabemos”, frisa.
Já a TSF – Metalúrgica de Precisão, Lda está a produzir viseiras, que tem vindo a oferecer a serviços de saúde e outras entidades. Mas não é por falta de encomendas, é uma questão de “responsabilidade social”. Na verdade, a empresa da Trofa continua a laborar 24 sobre 24 horas. Só há pausas ao sábado à tarde e domingo todo o dia. Dos muitos artigos que a TSF produz – e que vão desde as válvulas para centrais nucleares a equipamentos para a indústria alimentar, passando pelas ferramentas para a montagem de aviões -, destaque para as máquinas de enchimento de perfume, cujas encomendas têm vindo a crescer, com pedidos de entregas urgentes. O que não admira, dado que os grandes grupos, como a LVMH, têm vindo também a substituir as suas produções normais pelo fabrico de álcool gel.
No caso da TSF, as viseiras estão a ser feitas na impressora 3D da empresa e a ideia partiu de um funcionário. “Achámos a ideia excelente, melhorámos o desenho da peça e otimizámo-lo, de modo a conseguirmos produzir duas viseiras ao mesmo tempo, já que se trata de um processo moroso. A máquina produz duas viseiras a cada duas horas e o nosso objetivo é oferecermos o número máximo que conseguirmos, mas não temos a pretensão de transformar isto numa nova área de negócio, só queremos mesmo ajudar enquanto for necessário”, explica ao Dinheiro Vivo Pedro Sousa, responsável da TSF. E embora a fábrica feche ao fim de semana, os trabalhadores levam a impressa 3D para casa de modo a que, a cada duas horas, continuem a sair, em contínuo, mais dois suportes de viseiras.
Com quase sete milhões de euros faturados em 2019, a TSF espera, neste ano, não ficar muito aquém dos 6 a 6,5 milhões. “Vamos ver, quer se queira quer não, não se produz o mesmo”, admite. Por outro lado, começa a ter “alguns constrangimentos” ao nível das matérias-primas. O principal desafio tem sido a gestão operacional dos seus 120 trabalhadores em época de covid-19. “Controlamos a temperatura a toda a gente à chegada e à saída, e todos trabalham de máscara e luvas. Temos quatro pavilhões, de mil metros quadrados cada, e ninguém passa de um pavilhão para o outro, nem os turnos se cruzam à entrada ou à saída. Os balneários e os refeitórios são desinfetados três vezes ao dia e a fabrica é desinfetada todos os sábados”, explica Pedro Sousa.
Com encomendas asseguradas pelo menos até junho, o empresário não espera grandes problemas. Mas admite que a gestão do dia a dia e a incerteza que a situação acarreta “é o maior desafio de todos”. “Tudo o que produzimos, exportamos. A nossa preocupação não é tanto Portugal, é mesmo a Europa”, frisa.
Deixe um comentário