No rescaldo de umas eleições europeias marcadas pela abstenção, o Presidente da República inaugurou as Conferências do Estoril com uma mensagem de apelo à mudança.
No campus da Universidade Nova de Carcavelos, com um auditório repleto para o ouvir, Marcelo Rebelo de Sousa começou por manifestar “otimismo” face ao número reduzido de votos, sublinhando o lado positivo da ida às urnas por parte de um terço dos portugueses. Teceu ainda elogios ao projeto europeu, aquele que deixa entrar “mesmo os que não são entusiásticos, porque é isso a democracia”.
Depois, reconheceu que nem tudo está bem. “É preciso mudar a Europa para que seja forte, unida e contribua para um mundo melhor. Não há mundo melhor nem justiça global sem Europa. A justiça global constrói-se a partir de justiças locais. Não há líderes mundiais fortes se não houver líderes nacionais e regionais fortes. A luta pela justiça, pela paz, pelos direitos humanos, pela democracia, pela abertura e pelo diálogo começa dentro de cada país”, destacou, também a propósito do tema central da edição deste ano das Conferências do Estoril: a Justiça.
Marcelo Rebelo de Sousa insistiu que essa luta por uma Europa mais forte “exige uma renovação”, com “mais juventude, mais coragem, criatividade, imaginação, novas formas de pensar, de viver e de decidir”. Apelou à abertura de “novos caminhos” através de um olhar focado no futuro.
Mantendo o tema da mudança como mote do discurso, o Presidente afirmou que essa passa primeiro “por dentro de nós próprios” e por uma recriação diária. “só ha triunfo da justiça global, regional e local se melhorarmos, tivermos humildade, se soubermos recomçear varias vezes ao longo da vida. o desafio dos valores é o grande desafio”
Marcelo falou ainda da “abertura” ao mundo e às civilizações como sendo o “retrato de Portugal”, não sendo “por acaso” que António Guterres é secretário-geral da ONU e que António Vitorino é Diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações.
Aproveitando a mudança de instalações das Conferências, que passaram do Centro de Congressos do Estoril para a Universidade Nova, Marcelo reforçou que sendo esta uma “escola de abertura ao futuro”, esse mesmo futuro terá de ser “mais justo que o presente, e o presente tem obrigação de ser mais justo que o passado”.
Desigualdade tem “enorme impacto” no PIB
Antes de Marcelo, coube à Presidente da Croácia arrancar uma onda audível de aplausos no auditório, com um discurso focado no empoderamento feminino. Kolinda Grabar-Kitarovic contou a sua própria história de superação para salientar que a desigualdade entre géneros “é como se apenas metade do nosso corpo funcionasse, não tirando partido de todo o seu potencial”.
A líder croata destacou ainda o facto de no mundo, haver apenas quatro chefes de Estado femininas eleitas por voto popular. “É como se as mulheres fossem apenas 2% da população mundial. Há algo de muito errado no mundo”, constatou, lembrando que o problema começa na “falta de ambição das jovens raparigas”.
Para defender a igualdade de géneros Kolinda Grabar-Kitarovic puxou ainda pelo argumento económico, “para convencer os céticos que ainda restam”, lembrando o “enorme impacto” que tem no PIB dos vários países.
“A paridade de género poderia melhorar o PIB da UE em quase 10%. E em economias como a Croácia o PIB poderia crescer 12%. Precisamos igualdade oportunidades para que ninguém fique para trás”.
A presidente da Croácia terminou o discurso em português, dirigindo-se ao “amigo” Marcelo Rebelo de Sousa. “Dizem que na política não há amizades, mas tu és uma excepção. Estou convencida de que os portugueses têm um presidente fantástico”. Os elogios foram retribuídos.
“Temos permitido que a ignorância alastre”
O pontapé de saída das conferências já tinha sido dado pelo presidente da Câmara de Cascais. Carlos Carreiras quis deixar uma mensagem de “tolerância, moralismo e diálogo franco”, a mesma que está no ADN das Conferências e da autarquia que lidera, destacou.
“As Conferências do Estoril projetam o que em Cascais consideramos que Portugal pode dar ao mundo: um espaço de liberdade. Este painel insta-nos a encontrar caminhos para esperanças comuns. E hoje é um dia difícil para falar de esperanças comuns”, apontou, também numa referência às eleições do dia anterior.
O presidente da Câmara de Cascais lamentou o “desmantelamento de alguns pilares da globalização” e questionou se as pessoas “estarão a perder a fé na democracia”, constatando que “a Europa tarda em mostar um sentido e uma visão para os cidadãos”.
Numa alusão ao papel da tecnologia na descrença dos cidadãos em relação à democracia, um dos temas em destaque nas Conferências, Carlos Carreiras sublinhou que, com o uso excessivo dos meios digitais, “temos permitido que o vírus da ignorância alastre”.
“Nunca estivemos tão ligados e simultaneamente tão sós. O outro passou a ser visto como estranho, o estranho como intruso e o intruso como inimigo. A crise financeira tornou-nos indiferentes a uma catástrofe humantária e os oportunistas viram aí uma janela para explorar o medo. Quando é que deixámos que a bondade dos nossos valores nos abandonasse? Somos coniventes com a globalização da indiferença. Se queremos um mundo mais justo, temos a obrigação de levar a democracia e a liberdade a todos os lugares onde haja um homem e uma mulher que queira quebrar grilhões”, concluiu.
As Conferências do Estoril arrancaram esta segunda-feira com a participação de oradores como o escritor José Eduardo Agualusa, o prémio Nobel da Paz de 2018 Denis Mukwege ou, via streaming, Juan Guaidó, líder da oposição ao regime da Venezuela. O evento prolonga-se até quarta-feira, dia 29.
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