//“O Fundo de Recuperação não é nenhuma bazuca, é uma receita para a agitação social”

“O Fundo de Recuperação não é nenhuma bazuca, é uma receita para a agitação social”

Daniel Stelter não está otimista face ao pacote de ajuda financeira negociado em Bruxelas, no valor de 750 mil milhões de euros, para ajudar os Estados-membros a enfrentar a crise gerada pela pandemia de Covid-19. Do total, Portugal vai receber 15,3 mil milhões em subvenções.

Para o economista alemão, especialista em crises económicas e financeiras, com o Fundo de Recuperação estamos a preparar o terreno para a próxima crise, com mais endividamento, e a atiçar a população, porque o dinheiro não vai chegar a todos.

Em entrevista à Renascença, o fundador do Fórum Beyond the Obvious, que se dedica a questões de estratégia macroeconómica, avisa que o euro é um “projeto falhado”, diz-se contra um rendimento básico universal e opõe-se a um novo confinamento — se voltássemos a fechar a economia, defende, levaríamos dez anos a recuperar.

Em “Coronmics”, o seu mais recente livro (Editorial Presença), defende que alguns setores da economia devem ser deixados em coma artificial no seguimento desta pandemia. Só depois será possível um novo começo, com mais investimento em infraestruturas e na Educação, um sistema social e tributário sustentável, Estados mais eficientes e eficazes e uma reforma alargada do sistema financeiro.

O título deste livro é “Coronomics”. O que tem esta crise de diferente das anteriores?

Esta crise é muito diferente da crise que vivemos na última década. Não é o resultado de dívida, não é o resultado de maus investimentos, não é o resultado de especulação. É uma crise da saúde, que atingiu a oferta e a procura de modo global. É obvio que foi amplificada pelas questões não resolvidas da última crise, nomeadamente elevados níveis de dívida, alto grau de especulação nos mercados financeiros, divergência na zona do euro, crescimento dececionante.

“Coronomics” é necessário por causa destas questões não resolvidas do passado. A “crise do coronavírus” abre portas a medidas económicas que eram, de qualquer modo, necessárias. Agora os bancos centrais e os políticos têm a desculpa perfeita.

Defende que despejar dinheiro na economia não é solução para a crise atual. Porquê?

Bem, no curto prazo é necessário empurrar o dinheiro para os mercados financeiros e a economia, para evitar o colapso. E isso funcionou. Mas, por princípio, sabemos que apenas fornecer mais dinheiro não é a solução para os problemas. Ajuda a esconder os problemas e a ganhar tempo, mas normalmente os problemas aumentam.

Cinco respostas para entender o fundo de recuperação aprovado em Bruxelas

Desde a década de 1980, os bancos centrais intervêm em todas as crises, seja na economia ou nos mercados financeiros. Qual foi o resultado? As pessoas assumiram cada vez mais dívidas em empresas que acreditaram que seriam resgatadas, caso houvesse problemas. E foram resgatadas! Foi assim que a dívida cresceu mais rápido do que antes, aumentou a fragilidade do sistema e conduziu ao aumento da frequência de crises… O Banco Central perdeu a sua independência há muito tempo.

Qual é a alternativa à “bazuca” da UE?

Bem, sejamos claros, o Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros representa uma mudança fundamental da UE e a possibilidade de a UE assumir, segundo as suas próprias condições, dívida no resto do mundo, onde a crise da dívida está a ser combatida com mais dívida.

Mas o Fundo não é nenhuma “bazuca”, equivale a menos de 1% do PIB anual dos países que recebem os fundos. Isso não é suficiente para estabilizar a UE e salvar o euro. Veremos mais biliões nos próximos anos, principalmente para os chamados “Green Deals” (programas de proteção ambiental), financiados pelo Banco Central Europeu (BCE).

Como sempre, este “dinheiro novo” vem com custos ocultos. Pode haver inflação, pelo menos nos preços dos ativos, e aqueles que chegarem primeiro ao dinheiro serão os vencedores. Os perdedores tendem sempre a ser as pessoas com menos rendimentos e menos ativos. Isto é uma receita para a agitação social.

A economia em “coma artificial”, que defende no livro, não era uma solução para aplicar logo no início da crise? Ainda pode ser utilizada, face a esta segunda vaga da Covid-19?

Se olhar para a situação atual aqui na Alemanha, parece que temos uma recuperação rápida, mas está a parar. Eu dei-lhe o nome de “raiz matemática espelhada”: primeiro rápido, mas os últimos 20% dolorosamente lentos.

Se pensar em pequenos negócios, como hotéis e restaurantes, ainda estão com problemas e muitas vezes não são apoiados pelo Governo. Aqui, a minha solução de coma funcionaria ainda hoje.

Perante uma nova vaga, suponho que não teremos um confinamento idêntico, isso seria tão prejudicial para as economias que levaria uma década para compensar as perdas.

O rendimento mínimo universal deve ser considerado pelos governos?

Se o definir como uma rede mínima de segurança, já existe na maioria dos países e devemos tê-la em todo o lado. Mas passar para um rendimento básico não é, na minha opinião, uma boa ideia.

“Sabemos que apenas fornecer mais dinheiro não é a solução para os problemas. Ajuda a esconder os problemas e a ganhar tempo, mas normalmente os problemas aumentam”

Na Europa, estamos no início de uma redução significativa da força de trabalho, devido ao envelhecimento. A migração não pode e não deve preencher a lacuna. Portanto, precisamos de um forte incentivo para as pessoas trabalharem. O rendimento básico faz o oposto.

É justo avançar com um imposto sobre a riqueza? Alguns multimilionários já pediram em carta aberta para serem taxados, querem ajudar a pagar a crise.

É injusto não taxar a riqueza. Mas a questão é: em quanto? Os portugueses ricos são menos ricos do que os ricos da França, Espanha, Itália e da Alemanha. Tributá-los pode ser popular, mas não ajudaria muito. Temos todos de pensar mais em criar riqueza do que simplesmente em redistribuí-la. E sim, os verdadeiramente ricos já organizaram a sua riqueza de uma forma que está fora do alcance dos governos.

No final das contas, os que são tributados são sempre os que estão no meio. Quanto aos bilionários, ninguém os impede de transferir dinheiro para a conta bancária do Governo.

Como podem as empresas lutar pela sobrevivência no atual contexto?

No curto prazo, tudo se resume à liquidez e à permanência no mercado. No médio prazo, trata-se de resiliência. Vimos como uma crise pode chegar rapidamente e, portanto, todas as empresas precisam de ser mais resistentes à crise. No livro, descrevo várias abordagens de como as empresas podem tirar proveito do novo mundo.

No início da pandemia muitos defenderam que a recuperação económica seria rápida. Acredita neste cenário ou ainda poderá piorar antes de melhorar? Corremos o risco de uma Grande Depressão?

Estávamos à beira de uma Grande Depressão, principalmente devido aos altos níveis de endividamento do sistema. Isso foi evitado, graças a – outra! – ronda de intervenções dos bancos centrais. E o que vemos? A dívida está de novo a crescer. Está a ser criada a base para a próxima crise.

Em algum momento tem de se encontrar uma verdadeira solução, uma forma de reestruturar os níveis de dívida e regressar a princípios económicos sólidos. Mais do que uma grande crise, receio que haja uma estagnação contínua da produtividade e do crescimento do rendimento, que conduza ao aumento das tensões sociais. Apenas a produtividade permite mais riqueza e redistribuição em uma sociedade.

“Mais do que uma grande crise, receio que haja uma estagnação contínua da produtividade e do crescimento do rendimento, que conduza ao aumento das tensões sociais”

Aqui vemos outro efeito colateral da nossa política de dinheiro cada vez mais barato: a “zombificação” das economias. Uma percentagem cada vez maior de empresas ganha apenas o suficiente para fingir que é capaz de cumprir a sua dívida. Não investem, não inovam. Os estudos mostram que as empresas são uma das principais razões para a baixa inflação e o baixo crescimento da produtividade. Neste ponto é preciso aceitar que isto não pode e não deve continuar.

Algum destes cenários — desordem civil, escalada do terrorismo, restrições económicas e extremismo — é provável num futuro próximo?

Se deixarmos de reformar e, em vez disso, continuarmos a tapar os problemas com dinheiro novo, prevejo a intensificação de conflitos sociais sobre a distribuição do rendimento gerado pela economia. Isso também levará a um aumento das tensões na UE. Se se puserem em prática medidas para combater as mudanças climáticas – o que será um fardo adicional para o rendimento – está encontrada a receita para os problemas.

A posição das economias no mercado global pode mudar?

Sim, pode. Basta olhar para a China, nos últimos 30 anos não chegava aos 30 primeiros, agora é o número um. A UE, entretanto, está a perder terreno. Pode dizer que é normal, as economias asiáticas estão a crescer mais rapidamente à medida que vêm de um nível inferior. Mas a UE não está a fazer um bom trabalho ao tentar permanecer relevante. Basta consultar o que prometeram em 2000, em Lisboa, e o que alcançaram. É deprimente.

A pandemia é um teste decisivo para o euro e o projeto europeu?

Foi um grande teste e, embora a opinião geral seja de que a UE passou, eu discordo. A UE tem dois problemas principais: o fracasso em chegar a acordo para implementar uma política de migração de trabalho e a negação das falhas mortais do euro.

Para resolver os problemas do euro é preciso reconhecer que os níveis de endividamento são muito altos e que muitos países não conseguem ter sucesso na unidade monetária. Isso não pode ser superado com mais dinheiro. Transferências e dívidas conjuntas fazem-nos ganhar tempo, mas não são uma solução. Em breve descobriremos que nem mesmo a Alemanha consegue manter o euro unido. Basta pensar nos grandes problemas económicos que teremos, quando as políticas climáticas forçarem a indústria automóvel a encolher significativamente.

Que economia vamos herdar desta crise? Que mudanças vai o coronavírus trazer?

Mais intervenção governamental, mais financiamento do Banco Central, mais intervencionismo. A curto prazo, fará com que o público se sinta bem. Mas não há boleias grátis.

O preço que todos teremos de pagar será alto e receio que a UE e o euro não irão sobreviver à próxima crise. Tudo porque os políticos se esquivam a fazer o que tem de ser feito: reestruturar a dívida, reordenar a Zona Euro, recapitalizar os bancos e permitir a reestruturação da economia, que é necessária há muito.

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