Momentos de crise têm o condão de adiar divergências e de unir as pessoas. A pandemia do coronavírus é algo de uma dimensão de que as gerações vivas podem ter ouvido falar mas nunca sentiram na pele. Os idosos de hoje eram crianças ou pré-adolescentes na Segunda Guerra Mundial e bebés de colo ao tempo da Grande Depressão dos anos 30.
Os “nossos”tempos, os do pós-guerra e da paz no mundo, da CEE e dos fundos comunitários, do desenvolvimento e dos avanços tecnológicos, trouxeram-nos sobretudo maior riqueza, mais comodidades, melhor saúde e muito maior esperança de vida.
Sem que estivéssemos preparados, chegou agora o momento de discutir muita coisa. E, por muito que nos custe, de percebermos que temos que mudar de vida. Isso significa, em primeira instância, questionarmos o modelo de Estado que nos rege e sermos capazes de evoluir para outro. Melhor, mais justo e mais equilibrado.
A nossa população activa ronda os 5,2 milhões de cidadãos. Se descontarmos os 350 mil que estão no desemprego e os quase 700 mil funcionários públicos, restam ainda mais de 4 milhões de pessoas, que são esmagadoramente trabalhadores do sector privado (há uma pequena parcela, de 250 mil, no sector social). Destes, 940 mil estão em situação de layoff.
Ou seja, 25 por cento da força de trabalho privada está em casa. E isto sem contar com o dono do café, a manicura, o barbeiro do bairro e até o senhor da loja de tatuagens. Estes (e são milhares) estão impedidos de trabalhar. E, por serem gerentes do seu próprio negócio, não têm direito a layoff nem a subsídio de desemprego.
Mais do que os números, esta realidade de carne o osso é uma calamidade a juntar à calamidade da pandemia. Nem precisamos de pensar no drama que é saber se o layoff é um balão de oxigénio até à retoma da actividade ou, infelizmente em muitos casos, uma ilusão temporária e um adiar do desemprego a prazo. Uma economia parcialmente parada e um sector privado amputado de um quarto da sua capacidade é uma desgraça social e económica em cima do flagelo sanitário.
Está na altura de se questionar porque não pode o Estado colocar uma parte do seu efectivo em situação de layoff. Há milhares e milhares de funcionários públicos que não podem actualmente trabalhar, por motivos de saúde, de segurança e dadas as tarefas de que se ocupam. Casos do atendimento e do contacto com o público, entre muitos outros exemplos. O Estado é fundamental no cumprimento das funções de soberania, como é essencial no exercício de funções sociais, da qual a saúde representa o mais claro exemplo da importância insubstituível do Estado.
Por cada médico, enfermeiro ou auxiliar que trabalha heroicamente e sem descanso num hospital público há um reverso da medalha. Há um técnico superior de um instituto, um administrativo de uma direcção-geral ou um motorista de uma autarquia que, em virtude da pandemia, não pode trabalhar. Mas que continua a receber um ordenado por inteiro.
Nada contra os técnicos, os auxiliares e os motoristas do Estado. O ponto é que para poder funcionar, para poder pagar devidamente a médicos, auxiliares e enfermeiros (evitando que estes tenham que emigrar para Reino Unido e acabem a tratar de Primeiros-ministros estrangeiros), o Estado precisa de ter critério e de usar de bom senso. E, quando o dinheiro não chega para tudo, o Estado precisa de ter prioridades.
*Nuno Botelho. Empresário e presidente da Associação Comercial do Porto.
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