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Licenciou-se em Gestão e Administração de Empresas na Católica e complementou os estudos com um mestrado em Filosofia do Conhecimento, além de ter feito o PADE na AESE Business School e passado pela Kellogg School of Managment. Entre outras experiências profissionais, numa carreira muito ligada ao setor energético, foi CEO da Prio, professor universitário e vice-presidente da Fundação AIP. Paulo Carmona é desde 2019 presidente da Associação Portuguesa de Produtores de Biocombustíveis e do Fórum de Administradores e Gestores de Empresas. Já liderou a ENSE – Entidade Nacional para o Setor Energético.
Vamos começar pelos preços da energia e os impactos da guerra no setor energético. A estratégia para fazer face à escalada de preços foi adequada?
Está a ser adequada, numa lógica de ação-reação. O petróleo está hoje a valores muito inferiores aos do início da guerra e o gás também, mas o pico que houve suscitou uma reação da UE na questão das renováveis, até como meio de diversificação geoestratégica. Há sempre a questão climática, mas sobretudo a Europa viu-se ao espelho e entendeu quão dependente é energeticamente em relação aos concorrentes – EUA, América Latina e Ásia -, uma dependência letal em termos de custos. E entrou em modo pânico, começando a açambarcar reservas até encher todos os tanques. A guerra pôs-nos a pensar, felizmente, no que podemos fazer. Claro que houve esquizofrenias, como a Alemanha fechar centrais nucleares e abrir as de carvão, que emitem gases. Felizmente, esse histerismo passou e a Europa, através do RePower EU, está a apostar forte nas renováveis. Há que cuidar os caprichos da natureza, mesmo porque as baterias ainda não estão tão desenvolvidas quanto queríamos – esse tema tem de ser dominado, mas tenho muita confiança na capacidade humana. Não podemos é antecipar saltos tecnológicos. Mas foi sobretudo um acordar para a Europa que nos ensinou a necessidade de diversificar fontes de abastecimento energético.
E os biocombustíveis continuam a ser o parente pobre das renováveis?
São talvez olhados de lado quando se trata da descarbonização dos transportes. Diz-se que os biocombustíveis competem com a alimentação, o que é falso, nomeadamente em Portugal – onde não se usa óleo de palma nem amidos para o fabrico; nós utilizamos principalmente óleos alimentares usados, na base da economia circular, e óleos que são subprodutos do fabrico de farinhas para os animais, nomeadamente o de soja e o de colza, que não se usa na alimentação. A soja é o elemento proteico essencial para alimentar os animais; ela é importada, esmagada para as farinhas e o óleo é desperdício. Dantes exportávamo-lo, até a preços abaixo de custo, para o Norte de África, mas os biocombustíveis vieram valorizar esse subproduto e com isso baixar o custo de fabrico das farinhas. Tanto que temos hoje farinha de soja muito competitiva e até exportamos para Espanha. Durante a pandemia, com o consumo de combustíveis a cair, cessou a incorporação de biocombustíveis porque não havia consumo de combustíveis; mas as fábricas continuaram a produzir farinha porque os animais precisavam de comer e nós também – leite, frango, ovos. E de repente o fabrico de farinhas parou porque não havia forma de escoar o óleo (que é 20% da soja). Os tanques estavam cheios porque não se produzia biocombustíveis. Foi por isso que se fez o despacho 4736/2020, a solicitar incorporação física de biocombustíveis, para que se escoasse os óleos e as fábricas poderem continuar a produzir farinhas para alimentar os animais.
Devia haver um olhar diferente sobre os biocombustíveis – até considerando o setor dos transportes e o potencial de transformar resíduos de outras indústrias em matéria-prima, nessa lógica muito circular?
O grande problema da descarbonização da economia são os transportes, porque o resto maioritariamente resolve-se com a eletricidade que produzimos. Nos transportes como se consegue? É muito difícil para já, dada a tecnologia, que funcionem a eletricidade – a não ser que utilizemos catenárias nas autoestradas, pode ser um caminho… ou placas indutoras. Mas não vale é a pena antecipar revoluções tecnológicas. E a questão prática é esta: os biocombustíveis são essenciais à descarbonização. Olhemos o veículo elétrico e a nossa realidade: segundo a ACAP, temos 5 milhões de carros, dos quais 200 mil elétricos. Somos um país pobre, com um parque automóvel de 20 anos e não vamos começar todos a comprar elétricos. Além disso, é preciso um reforço enorme na rede elétrica para colocar todos os carregadores, de forma a carregar o carro em casa sem ter de desligar o frigorífico ou deixar de ver TV. Na Alemanha, está proibido o carregamento nos edifícios enquanto não se requalificar a rede. Atenção, o veículo elétrico é uma ótima solução, mas não pode ser a única. E há que fazer planeamento. Se nós andamos há 50 anos a discutir o aeroporto, há 30 a debater o plano ferroviário, vamos levar 20 para ter uma rede elétrica que sustente essa nossa ambição. Nós sabemos o que queremos: a descarbonização da economia e melhor ambiente para nós e os nossos filhos. Como? Sem impor vias únicas. É bom ter elétrico, mas se ultrapassar 20% do total vamos ter problemas.
E o biocombustível pode ser alternativa?
Não é a alternativa, mas uma das alternativas. A Europa às vezes vira-se toda para um lado e ainda há pouco tempo a Alemanha, que é um grande produtor automóvel, veio pôr um ponto de ordem nisso, dizendo que os motores a combustão não podem acabar em 2035. Há muita coisa que se faz com eles e não vamos ficar dependentes de tecnologia que nem é nossa. Vamos é tornar os motores a explosão limpos, criar combustíveis sintéticos verdes – através de hidrogénio – e assim não se destrói vias. O hidrogénio é uma das possibilidades, os veículos elétricos outra, os biocombustíveis também estão a avançar. O objetivo é comum e a forma de lá chegar deve ser democrática. Mas os biocombustíveis não podem mesmo ser postos fora da equação. Aliás as metas europeias são altas: nós temos 11%, que é relativamente perto da média de biocombustíveis europeia, mas há erros.
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Quais?
Para atingir as metas de 11%, aprovou-se um decreto-lei, a 6 de abril, que impõe restrições a matérias-primas de origem agrícola porque alguém diz que o óleo de soja e o de colza concorrem com a alimentação – e é mentira. Ninguém usa esses óleos para cozinhar. E temos necessidade de produzir por causa da farinha, portanto o produto existe. Se pomos um limite aqui, acaba-se com esse potencial de economia circular. A única produção que não tem cap é a que usa através de resíduos matérias-primas avançadas, nomeadamente lenho-celulósicas, biomassas das florestas, gordura retirada dos esgotos. Se limitamos a matéria isso também penalizamos a fileira agrícola, porque nunca antes se plantou soja e colza aqui. E na Europa nem há capacidade tecnológica para produzir óleos a partir de algas ou cardos – é preciso apoios para as desenvolver. Então o que acontece é que a Europa está a ser invadida por exportações chinesas de biodiesel dito avançado porque traz um papel a dizer que aquilo vem de um esgoto em Xangai.
E não é assim…
Supostamente, na China há 43 fábricas através de esgoto – a Europa tem uma. E como não há verificação, porque não nos deixam lá entrar, todos desconfiam desse avanço chinês mas ninguém pode ver. E diplomaticamente, ninguém vai pôr em causa um carimbo de uma instituição chinesa.
O Paulo está a pôr.
Estou, porque tenho esse ceticismo. Nós na Europa temos uma fábrica em condições de extração de óleos em quantidade industrial; a Índia exporta para Portugal toda a produção do desperdício das terras raras de filtração. Estas contas não batem certo. Portanto, nas matérias-primas avançadas está a acontecer isso: vem o papel e pronto. E estamos a enriquecer quem faz os carimbos e sem controlo nosso e a destruir riqueza em Portugal, sem fiscalizar as importações. Já para não falar em escravatura, mão-de-obra infantil… portanto, vamos fechar fábricas na Europa porque estamos a importar o que se produz ninguém sabe como.
Mas isso não contradiz os objetivos de uma Europa verde?
Bruxelas pensa mais na questão burocrática de atingir as metas seja como for; e os chineses até se riem. Nós estamos preocupados em salvar o planeta e eles abrem centrais a carvão, vendem matérias-primas, metais raros, tecnologia para as baterias, biocombustíveis… e riem-se dos nossos esforços verdadeiros e legítimos, porque estão a ganhar dinheiro à nossa conta. É um contrassenso. Aliás, Joe Biden quando fez toda aquela promoção das renováveis veio dizer que ia tomar medidas contra atitudes anticoncorrenciais de países terceiros nas questões das renováveis – até agora não fez nada, mas deu um powerpoint porreiro com as metas.
Os meios e as tecnologias para alcançar a descarbonização têm avançado com objetivos muito exigentes de Bruxelas. Mas o impacto que se quer no ambiente pesa também no bolso dos cidadãos. Que tipo de medidas podem equilibrar esta equação?
Isso leva-nos ao trilema energético: assegurar a questão ambiental, com segurança energética e as poupanças das famílias. E é gravoso num país como o nosso, em que 26% das pessoas dizem não ter como aquecer as casas no inverno. Tem de haver bom senso. Portugal não tem de estar no pelotão da frente, ainda que não deva ficar na cauda. Temos 0,14% das emissões globais e as políticas têm sido boas para nós, temos agora, aliás, uma componente de renováveis interessante – ao contrário do que aconteceu com o “avancemos em força para as renováveis” de Manuel Pinho, que criou verdadeiros desastres tarifários que ainda estamos a pagar. Portanto, não sejamos os pioneiros que apanham com as setas, nem os chineses que vão à boleia, haja meio termo. E há que fazer contas. Por exemplo, estão previstos 2 mil MW de free float na Wind Float da EDP mas é um projeto-piloto e custou imenso dinheiro – a que preço ficará essa energia? As contas têm de ser feitas porque somos nós que pagamos através dos nossos impostos.
Mas há incentivos, até do PRR.
Sim, mas pagam-se… e também podem ir para outras coisas. O hidrogénio, por exemplo, é uma solução bastante cara mas que faz sentido no meio da tal equação energética. Não vamos é dar lições ao mundo.
Portugal tem a primeira empresa do mundo a produzir um combustível sustentável e certificado – o EcoGreen Power, que reduz 99,75% das emissões de CO2 na indústria. Pode surgir aí uma nova solução ou já é tarde para combater as tendências europeias e a opinião pública?
Devemos sempre ter mente aberta às soluções inovadoras e à economia circular.
Mas a opinião pública não está já tão condicionada contra os combustíveis, quaisquer que sejam, que inviabiliza algumas delas?
Isso é uma questão ideológica de cancelamento de soluções e imposição de outras. Cada um deve decidir o meio, desde que o fim seja a descarbonização e as soluções sejam viáveis.
Não é essa postura da Europa…
A Europa não tem estado muito aberta a alternativas. O nuclear por exemplo, não é solução para Portugal. Mas a esquizofrenia de abandonar o nuclear e toda a gente aplaudir, quando é a única solução no mundo segura – no sentido de não ser intermitente nem depender da natureza e não ter emissões -, para trocá-lo pelo carvão… queremos salvar o planeta ou acabar com o nuclear? Há resíduos, claro, mas também os há nas baterias. Não podemos ser mentalmente fechados, estar amarrados em termos ideológicos. Há várias soluções e acredito que se vai desenvolver tecnologia para resolver os problemas, mas não conhecemos o paradigma energético daqui a 20 anos, por isso devemos estar abertos a tudo. A capacidade humana vai resolver muitos dos nossos problemas.
Em termos de incorporação, o que falta cumprir a Portugal das metas desenhadas por Bruxelas? E o que significam hoje os biocombustíveis para o país?
Na produção portuguesa, é uma fileira grande com muito emprego, há importação livre, não há sobrecusto para os consumidores e conseguimos criar e fixar essa riqueza em Portugal. Estamos a falar de 250 a 300 mil m3 de produção de origem vegetal e de óleos alimentares usados, que são 60% da produção. É economia circular. Estamos com uma capacidade de recolha de 22% dos óleos alimentares usados no país. É mais fácil em grandes fábricas de fritos, de margarinas, e consegue-se porque há a ajuda europeia da dupla contagem, que incentiva a recolha. Opomo-nos é ao que foi feito em Portugal com os tetos. As fábricas de farinhas produzem óleo e não faz sentido desperdiçá-lo, como não faz sentido pôr tetos aos óleos utilizados e depois ter de importar para incorporação. Não há razoabilidade nestas decisões de alguma inspiração europeia. E a indústria sofre com isso e com a importação de países não fiscalizados – cá fiscalizamos ao limite do restaurante de onde vem o óleo.
Mas deve ser o governo a impor regras ou a UE?
Os governos são autónomos. O biodiesel de matéria-prima avançada tem isenção de ISP há dois anos e meio, mas para isso devíamos saber de onde vem esse produto, porque essa isenção custa perto de 60 milhões de euros aos contribuintes – são os tais que vêm da Índia ou da China, importados pelas petrolíferas. Essa isenção só existe em Portugal. E não podemos controlar o esgoto ou pastelaria de onde vem.
A isenção devia acabar?
Não digo acabar, porque isso é uma decisão política. O que discuto é que se favoreça a importação não controlada, que se dê 60 milhões de isenção em que 40 milhões vêm de fora, quando se podia direcionar essa ajuda para Portugal, até para ajudar na dimensão tecnológica das nossas universidades, para investigar. Ou seja, dar a isenção onde se consiga controlar a origem da matéria-prima avançada. Se na China não me deixam ver a origem, não tem isenção. A UTAD, em Trás-os-Montes, e Agronomia têm coisas brutais em biocombustíveis, Évora está a avançar, então vamos incentivar o que se faz cá. Os contribuintes também gostam de ver que o seu dinheiro é bem utilizado.
Virando a agulha para o seu papel no Fórum de Administradores e Gestores, como viu os últimos apoios à economia e as metas do Programa de Estabilidade, que prevê mais crescimento (1,8%) mas também inflação (5,1%)? Estes números alteram as perspetivas “menos otimistas” do vosso barómetro de há um mês?
Os gestores ficaram bastante confiantes quando o governo teve maioria absoluta, porque isso dá capacidade de implementar um programa sem depender de negociações com parceiros que muitas vezes eram escorregadios e não amigos das empresas. Mas o otimismo esfriou desde o final do ano passado, com todas as questões e questiúnculas, casos e casinhos, com alguma volatilidade da ação do governo e uma certa deriva muito mais populista nas medidas. Se pudéssemos resolver problemas por decreto não havia governos incompetentes. Há uma instabilidade que esperemos que acalme, porque, como se diz no Fórum, surpresas, nem boas. O que queremos é estabilidade fiscal e legal para conduzir o trabalho.
Sobretudo num momento já instável.
Exato. O governo está a fazer uma coisa em termos de estabilidade macroeconómica que tem de ser louvada: apesar de garantir que não há austeridade, continua com práticas de controlo das contas e a fazer cumprir o pagamento da dívida – e isso é importante, dá estabilidade macrofinanceira. Mas fá-lo de uma forma sonsa, porque diz que não está a fazer, mas está. Estas medidas foram adiadas por uma questão de prudência – a suspensão do decreto de atualização das pensões é um bocado extrema, a fugir ao cumprimento da lei; e o IVA zero era muito mais relevante apoiar diretamente as famílias.
E não vêm fora de tempo?
Pois, isto já foi feito há muito por outros países. O governo dizer que apoiou 3 milhões de famílias revela que ao fim deste tempo todo ainda temos tantos portugueses a precisar de assistência do governo para fazer face a estas situações. E isto devia fazer-nos pensar em tudo o que ficou por fazer por incúria, incompetência ou azar. Fez-se coisas muito boas, mas este caminho continua a revelar maus salários, exportação dos nossos talentos e uma situação má em relação aos nossos parceiros.
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