Mais de metade das pessoas em situação de pobreza em Portugal tem um emprego, na sua maioria com contratos de trabalho sem termo. A constatação está inscrita no estudo “Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos”, lançado nesta segunda-feira pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e coordenado pelo sociólogo Fernando Diogo, da Universidade dos Açores.
O estudo cruzou os últimos dados disponíveis do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e relativos a 2018, com uma análise qualitativa baseada em 91 entrevistas realizadas em todo o país junto de indivíduos maiores de 18 anos.
“Não basta ter um emprego seguro para não se ser pobre. A conjugação entre os baixos rendimentos do trabalho e a estrutura familiar (famílias com alguma dimensão e tipologia diversa bem como com desemprego familiar), num contexto de fraqueza dos apoios sociais, explica que se possa ser um trabalhador contratualmente estável e, ao mesmo tempo, ser‐se pobre”, pode ler-se no estudo agora divulgado.
Em mais de metade dos entrevistados com este perfil, os investigadores encontraram indivíduos com contratos sem termo, muitos há mais de dez anos, alguns mesmo há mais de 20, e que continuam em situação de pobreza. Estes trabalhadores encontram-se geralmente na construção civil, agricultura, pesca e serviços.
Os investigadores sustentam que a razão da pobreza “reside na coexistência do trabalho com baixos salários” com o chamado “desemprego familiar“, que caracteriza a combinação no mercado de trabalho dos membros do agregado familiar, sendo que o rendimento não constitui condição suficiente para a superação da pobreza.
Pobres que sempre foram pobres
Um quinto da população portuguesa é pobre e pode ser dividida em quatro perfis: os reformados (27,5% dos pobres), os precários (26,6%), os desempregados (13%) e os trabalhadores (32,9%). Os trabalhadores pobres são aqueles que congregam famílias mais numerosas e uma parte substancial revelou ser responsável pelo sustento dos familiares adultos que não trabalham.
A isto junta-se um contexto que não é favorável a uma melhoria da sua situação económica. O estudo mostra que neste grupo dos trabalhadores pobres há uma trajetória de vida marcada por pobreza logo na infância e depois na vida adulta. Saíram cedo da escola para entrar no mercado de trabalho, por volta dos 15 anos, para ajudar a família, devido a problemas de saúde dos pais ou dos próprios enquanto crianças, a instabilidade laboral e até a perda de membros significativos do agregado familiar.
“Em todos os perfis é possível identificar, para a maioria dos entrevistados, um processo de reprodução intergeracional da pobreza. Estamos, pois, em presença do que podemos designar por pobreza tradicional. Esses indivíduos cresceram num contexto mais ou menos continuado de privação, o que condicionou, à partida, as suas oportunidades de vida, nomeadamente contribuindo para antecipar a sua saída da escola e a entrada no mercado de trabalho, assim ingressando em empregos pouco qualificados. Em muitos casos, o que está em causa é simplesmente a própria escassez de rendimentos. Numa parte significativa dos casos, essa era já a condição dos progenitores aquando do seu nascimento”, pode ler-se no estudo agora lançado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Pobreza infantil preocupante
Desde 2007 que a taxa de pobreza é superior dos 0 aos 17 anos do que nos maiores de 65 anos. Nos últimos anos, mais de 20% da população pobre é constituída por crianças e jovens, embora tenha descido dessa fasquia nos últimos 3 anos, ficando, contudo, acima da taxa global de pobreza ( 17,2 % em 2018)
“A incidência da pobreza dos agregados familiares com crianças é 2,8 pontos percentuais superior à das famílias sem crianças. A população pobre residindo em famílias com crianças representava, em 2016, mais de metade do conjunto da população em situação de pobreza monetária”, adiantam os investigadores neste estudo agora divulgado, sublinhando a persistência destes indicadores nos últimos anos.
A maior parte dos entrevistados exprimiram uma posição positiva em relação às possibilidades da escola como “alavanca para um outro futuro” ,eventualmente menos marcada pela privação, se tivessem continuado a estudar. ” Mas isso não implicou um qualquer regresso à escola como adultos, para a grande maioria”, complementam os autores.
Os três D’s da pobreza
A pobreza tem uma clara dimensão familiar e na maior parte das biografias, estes pobres entraram na pobreza na infância e nunca conseguiram sair. O contexto não ajudou em particular aquilo que os investigadores designam pelos três D da pobreza: o Divórcio, o Desemprego e a Doença. Em 2018, quase metade dos desempregados viviam numa situação de pobreza.
A taxa de pobreza corresponde à percentagem de indivíduos com rendimento inferior a 60% do rendimento mediano observado no país num determinado ano e situava-se, em 2018, nos 501,2 euros mensais. Pequenas quantias, como 20 ou 30 euros por mês, têm um impacto muito grande na gestão do orçamento doméstico dos entrevistados. Uma boa parte dos inquiridos considera que não se encontra em situação de pobreza, e compara‑se com pessoas mais pobres, em especial em situações de miséria. Na verdade, pelas entrevistas feitas, a maioria diz-se resignada mas considera‑se feliz.
A taxa de pobreza feminina é superior à masculina em 0,9 pontos percentuais. Os investigadores encontraram muitos casos de mulheres pobres que, ao assumirem o trabalho doméstico, afastaram-se do mundo do trabalho e da possibilidade de, com o seu salário, partilharem os encargos familiares.
“A necessidade de autoexclusão das mulheres do mercado de trabalho, a debilidade da rede de apoio familiar e a ausência de políticas sociais de proteção à infância constituem fatores estruturais de agravamento da situação de pobreza destes agregados domésticos”, pode ler-se neste estudo que conclui ainda que falham também protecções sociais para fazer face ao desemprego dos filhos adultos ativos, na garantia mínima de rendimentos, e nos valores das prestações familiares que deveriam também fazer a prevenção da pobreza entre as crianças que, em número superior à média nacional, integram estes agregados familiares.
Pandemia vai intensificar pobreza
O estudo não abrange em detalhe o impacto da pandemia na pobreza , embora os autores admitem que irá haver um problema estatístico que decorre da queda dos rendimentos medianos, fazendo cair o limiar da pobreza e que pode levar à subestimação do impacto da crise pandémica no aumento da pobreza em Portugal.
Num posfácio do estudo, os autores mostram-se preocupados com o impacto da pandemia nas crianças e adolescentes. “Os apoios sociais em Portugal são bastante focados nos mais idosos, pelo que a vulnerabilidade dos mais novos tenderá a acentuar‐se, mais uma vez seguindo e amplificando as linhas de fratura, de vulnerabilidade, e de desigualdades, previamente existentes”, acentuam os investigadores.
Em jeito de conclusão, os autores reconhecem que “parece claro que a pandemia e suas consequências estão já a ter um efeito na pobreza em Portugal, intensificando‐a e aumentando o número de pessoas nessa situação”. O agravamento da situação vai decorrer da “inexistência de uma solução rápida” que só será possível, alertam os investigadores, “se os políticos responsáveis, no governo e na oposição, resistirem à pressão de alocar todos os recursos a interesses capazes de se mobilizar politicamente”.
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