Quais são os desafios de se fazer mecenato cultural em Portugal em 2023? É preciso, por vezes, ter esse rasgo de intervir para também poder mobilizar outros meios?
Exatamente. Esse é o ponto fundamental, e é um dos pilares. A nossa entrada permite a alavancagem de maneira a irem buscar outros recursos que muitas vezes são necessários. Temos feito isso com consistência. Não estou a falar aqui apenas da parte arquitetónica, mas também de cooperações que temos feito.
Uma que está agora em andamento é esta a recuperação ou renovação dos painéis de São Vicente. É uma obra icónica, e a nossa grande obra de pintura, e, para o Museu de Arte Antiga que é um dos nossos parceiros tradicionais na recuperação do próprio edifício e dos conteúdos do museu, esta decisão de fazermos o restauro dos painéis de São Vicente é extraordinária. Permite a toda a gente ir acompanhando os trabalhos de restauro. O próprio museu entendeu que deveria abrir ao grande público de maneira as pessoas poderem acompanhar. Isso é notável.
A recuperação dos Painéis de São Vicente de Fora tem implicações técnicas complicadas?
Eu próprio tenho visto a maneira meticulosa e a dificuldade, e ao mesmo tempo a perícia que é necessária ter para se recuperar aqueles painéis, acho que a Fundação Millennium orgulha-se muito de ter patrocinado esta recuperação e felicita muito o museu que tem tido um trabalho notável. Transformou o Museu de Arte Antiga que era um bocadinho poeirento numa casa dinâmica e uma mostra notável do que é a cultura portuguesa.
Mas acha que faltam mais exemplos de mecenato cultural? Deveria haver outro tipo de enquadramento legal para quem é mecenas, outro tipo de incentivos fiscais para se poder mobilizar mais mecenato para esta área?
Acho que sim. Devia haver e espero que a revisão da Lei do Mecenato traga vantagens, algumas que parecem óbvias, porque nós trabalhamos para o mesmo objetivo. É evidente que o que estamos a fazer não é apenas para fazer um bom nome da nossa fundação ou de outra qualquer fundação. O que se está a trabalhar é para salvaguardar e requalificar e dar outra dimensão e reconhecimento àquilo que é o património português.
E aí acho que o Estado podia até, por exemplo, ajudar nestas obras em que nós entramos de recuperação das igrejas, de palácios, de sítios arqueológicos importantes, de museus e de outras instituições que nós consideramos relevantes, nós entramos e depois simplesmente temos de pagar IVA, excessivo, muitas vezes 23%, que de facto atinge ou vai comer uma boa parte daquilo que é o nosso orçamento.
Deveria ser alterado?
Acho que isso deveria ser revisto, porque, de facto, o IVA aí não se justifica. Porque uma das maneiras que nós tínhamos de dispor ou ter maior disponibilidade para ajudar mais projetos, um deles é poder utilizar estas verbas que hoje em dia destinamos ao pagamento do IVA, que fossem alocadas aquilo que é essencial que é a recuperação da obra ou do monumento que nós queremos, ou estamos a apoiar.
Já deixou essa mensagem a este Governo, nomeadamente ao ministro da Cultura?
Já, já! A todos os ministros da Cultura. O atual ministro da Cultura aliás está muito empenhado nisto e estamos à espera que tome as decisões necessárias neste campo, sempre tendo em vista que o objetivo disto não é favorecer o trabalho de nenhuma instituição, é, pelo contrário, garantir que estamos a trabalhar na recuperação. E de uma nova maneira de encarar e de utilizar aquilo que são os nossos monumentos nacionais.
Percorrendo aqui este edifício na Baixa de Lisboa onde está a Fundação vemos várias obras de arte que fazem parte da coleção da Fundação Millennium BCP. A coleção de arte continua a crescer? Continuam a ter uma política de aquisições?
Não. Esse é um dos pontos importantes, onde eu espero que o futuro próximo nos permita voltar a um certo ritmo que tivemos no passado. Nós temos uma coleção notável, sobretudo de pintura portuguesa, que vai do naturalismo, no final século XIX até ao abstracionismo dos anos 1970.
As vicissitudes por que passou o próprio banco, e as dificuldades que nós tivemos de encarar do ponto de vista orçamental, levaram a que o Banco deixasse de ter uma política de aquisições para toda a sua coleção.
Estamos sujeitos a ter de combater o projeto megalómano e ditatorial de um regime que teve a infelicidade de gerar um homem como Putin
Mas mantêm o interesse?
Temos sempre acompanhado, temos sempre uma consultoria em relação ao banco que permite saber como é que nós queremos ainda valorizar esta coleção. Mas temos de aguardar por melhores dias, porque é evidente que as aquisições para a Fundação e a própria Fundação só terá a beneficiar com o Banco a retomar uma política até de dividendos em relação aos seus acionistas que nos permitam, e permitam ao banco depois sustentar aquilo que serão as ações de mecenato da própria fundação.
Não podemos esquecer que o único financiador da Fundação é o banco BCP, que teve uma atuação notável, não só na criação da fundação, no apoio que dá à fundação, mas também tem algumas situações notáveis, como é, por exemplo, a decisão de preservarmos todos os vestígios e as ruínas que tínhamos arqueológicas aqui neste edifício.
Isso permitiu-nos hoje ter o NARC (Núcleo de Arqueologia da Rua dos Correeiros) que é uma obra farol da fundação, que só foi possível graças ao apoio do banco.
Ainda em relação à coleção, há uma política de empréstimos para exposições temporárias e apoiam exposições. Uma delas está agora no espaço Brotéria, em Lisboa. Procuram esses exemplos de excelência cultural para, em termos de arte, também emprestar quadros da coleção e incentivar esse tipo de atividades?
Sim, procuramos e sobretudo, temos consciência de que o facto do banco ter uma coleção, não é apenas para usufruto próprio. O interesse da coleção que temos é também o interesse de divulgarmos a arte portuguesa, sobretudo, aqui mesmo em Portugal. É por isso que não temos isto fechado em gabinetes. Procuramos é há muito tempo, o meu antecessor, o professor Fernando Nogueira foi muito eficaz nisso, criou aquilo, a que chamamos a Arte Partilhada.
Entramos, muitas vezes, com outras instituições, numa espécie de diálogo entre a nossa coleção e outras de maneira a fazermos exposições que têm até um sentido de serem descentralizadas. Não ser apenas aqui em Lisboa ou no Porto que são os centros de atração deste tipo de exposições, mas muito descentralizada e fora. Desde Vila do Conde a Faro, Guimarães. Onde podemos estar e onde a nossa colocação pode estar à disposição do público.
Têm projetos expositivos para breve?
Temos. Por isso mesmo tivemos sempre uma galeria pequenina, mas depois fizemos um protocolo com o ministério da Cultura e com o Museu Nacional de Arte Contemporânea, o Museu do Chiado e criamos uma galeria Millennium BCP dentro do museu. Isto significa da nossa parte, a ideia de que público e privado temos que trabalhar de mão dada de maneira a garantirmos as melhores decisões e o melhor aproveitamento que temos dos nossos clientes culturais.
Esta galeria tem uma programação conjunta com o Museu Nacional de Arte Contemporânea, e unimos as duas forças. O museu dá-nos a parte de museologia que é muito importante e que nos falta a nós. E nós damos alguma agilidade financeira à realização de exposições conjuntas que de outra maneira não existiriam ou teriam dificuldade em ser levadas a cabo.
A coleção tem sido também um motivo de grande satisfação, porque permitimos e temos possibilitado que noutras partes do país se consiga fazer exposições que normalmente implicam depois catálogos e até conferências que, no fundo, também têm uma ação educativa de formação que é extremamente importante. Não é apenas vermos as obras, é também saber como se chegou lá, o trabalho que é feito, o papel que tem os nossos artistas, e por isso, temos também uma tendência da fundação a dar prémios.
Ultimamente, o Estado aumentou bastante a sua coleção de arte com a integração de coleções que pertenceram a bancos como o BPP, ao banqueiro João Rendeiro, com a Fundação Elipse, há também o caso da Fundação Berardo. Como é que vê estes casos? A banca e alguns banqueiros não souberam cuidar deste património?
Eu creio que ao contrário. Alguns banqueiros reuniram obras de arte que hoje em dia merecem e devem ser património de todo o país, até pelas vicissitudes, porque eles próprios atravessaram e essas instituições conheceram.
Eu creio que é muito importante preservá-las e mantê-las cá, porque é evidente que a Coleção Berardo, ou a Coleção Elipse, acrescentam valor àquilo que nós temos e ao que é o nosso património.
Acho muito bem e tenho acompanhado com muito interesse aquilo que o Governo tem vindo a definir o ministério da Cultura e o próprio ministro para o aproveitamento destas coleções e de outras que possam surgir, com o mesmo objetivo, de pô-las ao serviço da promoção da nossa cultura, permitindo que seja vista pela maior parte dos portugueses e não apenas, também pelos estrangeiros que nos vêm visitar. Mas de uma forma sustentável, com uma definição clara daquilo que poderá ser o papel dessas coleções, no âmbito da nossa cultura.
Há pouco falou da questão do Núcleo de Arqueologia situado neste edifício entre a Rua Augusta e a Rua dos Correeiros. Venceu recentemente um prémio a empresa que dinamizou a forma expositiva deste núcleo arqueológico. Estamos no epicentro da cidade de Lisboa, que também muito mudou em termos turísticos nos últimos tempos. Isso também se tem refletido nas visitas que têm? A procura dos portugueses é menor do que a dos estrangeiros?
Não, até há um certo equilíbrio na procura. Este surto, esta melhoria em termos da oferta turística e que tem ajudado muito à economia do país, também tem um reflexo muito direto naquilo que é o património histórico de Portugal. E nesta zona, é fértil, porque toda esta baixa está em cima de vestígios de várias civilizações.
Tivemos a sorte de ter aqui um conjunto, num pequeno espaço, de ter ali uma narrativa da história de Lisboa e de Portugal que a todos interessa conhecer, e por isso o Banco teve também essa virtude. Foi quanto se detetaram estes vestígios, decidiu imediatamente chamar, não apenas o património cultural, mas também outras instituições como o Museu de Arqueologia de maneira a garantir que íamos preservar como está feito. Abriu-se ao público. Tivemos êxito, um registo assinalável de visitantes, mas ainda sem o fluxo que temos hoje.
Foi de tal maneira que a fundação entendeu que, passados 20 anos, era altura de renovar, com equipas como a Edigma que trabalharam neste projeto e o resultado está sobretudo refletido nas visitas que tem havido.
Mas são então mais os portugueses do que os estrangeiros a visitarem o NARC?
Nós não procuramos mostrar ao maior número de gente, procuramos que muita gente venha em condições. Temos um circuito, com visita guiada, sempre. São recursos limitados para garantir que não há desgaste excessivo do sítio arqueológico.
Temos uma abertura muito grande, sobretudo à procura de atingir a população mais jovem. Temos escolas e temos tido imenso êxito. A percentagem, no fundo, entre portugueses e estrangeiros é muito equilibrada. Nós temos cerca de 60% dos visitantes portugueses, 40% são estrangeiros.
Em 45 minutos, temos uma ideia do que a História de Lisboa. São 2500 anos de História. Para nós o mais importante aqui é continuar a garantir o usufruto destes vestígios arqueológicos é feito de maneira a valorizar aquilo que é a realização do homem nesta área.
O embaixador já está há alguns anos à frente da Fundação. Que marca quer deixar?
É uma pergunta importante. A principal marca desta fundação é ter um objetivo definido que o banco Millennium BCP decidiu assumir uma clara política de responsabilidade social baseada, na preservação e na divulgação daquilo que são os elementos fundamentais da nossa identidade nacional.
O banco define, e bem, aquilo que espera que a fundação faça. Depois, a fundação teve sorte de ter à frente pessoas extremamente qualificadas, que também souberam conciliar a estreiteza dos meios financeiros de que sempre dispomos, com o chegar o mais longe possível nos apoios que podíamos fazer. E que esses apoios fossem também aqueles que mais servissem o maior número de portugueses que gosta de usufruir destes bens culturais.
Por isso, para mim, se pergunta qual a marca que eu gostaria de deixar. A primeira é que fui capaz de dar continuidade com sucesso aquilo que os antecessores fizeram. E claro que beneficio muito de uma equipa que tem garantido coerência e a coesão da atividade da fundação.
Não temos tido desvios em relação àquilo que é definido pelo nosso Conselho Curadores como orientação geral. Temos cumprido sempre aquilo que podemos fazer. Temos de uma maneira, às vezes muito ágil, ocorrido a situações de emergência que, de outra maneira e outras instituições, não têm esta facilidade. E depois temos também uma preocupação, e essa é a marca que quero deixar, que é a da proximidade.
Que tipo de proximidade?
Nós estamos sempre prontos e dispostos a avançar, a discutir, a ouvir e a trabalhar com até com novas ideias. Não apenas com aquilo que é o passado, com a preservação do património arquitetónico, por exemplo, ou outro cultural, mas também com aquilo que é novo, com novas tendências, ajudando, impulsionando até as camadas mais jovens, a encarar melhor as dificuldades e as vantagens do mundo atual. É por isso temos muito apoios à formação, à investigação.
Deixe-me sair um pouco da Fundação Millennium BCP e olhando para todo o seu percurso profissional na área da diplomacia, como é que vê a atual situação da Europa? Estamos a completar um ano de uma guerra que a Europa não queria e que está a ter consequências para todo o mundo. Que perspetiva é que acha que poderemos ter para os próximos tempos a manter-se esta guerra?
Nós vivemos tempos muito complicados. É obvio que estamos a atravessar um momento muito difícil, e um momento até inesperado para gente por exemplo, como eu próprio que teve uma vida dedicada à diplomacia. Se me perguntasse há uns anos onde é que nós estaríamos nesta altura, numa eu teria imaginado estarmos nesta altura e que teríamos de enfrentar, por exemplo, uma guerra, ainda na Europa!
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