//“Reconfiguração do mundo agrícola só lá vai com convergência e diálogo, não com braços de ferro”

“Reconfiguração do mundo agrícola só lá vai com convergência e diálogo, não com braços de ferro”

Os líderes políticos ainda resistem ao “Pacto Ecológico”, ao contrário do mundo financeiro e das empresas, que já acordaram para a fatura ambiental, denuncia à Renascença o diretor para a Biodiversidade da Direção-Geral do Ambiente da Comissão Europeia.

Humberto Rosa admite, no entanto, que há setores económicos onde a vertente ambiental ainda tem de ser trabalhada, como a agricultura. Por isso elogia a abertura do executivo comunitário para rever a CAP, num ambiente de diálogo que deverá incluir todos e dar resultados em breve.

Nesta entrevista, à margem da cimeira “Digital With Purpose” que decorreu no Estoril, Humberto Rosa apresentou ainda um balanço positivo das primeiras metas para a biodiversidade, fixadas para 2030, e falou do que está a ser feito para combater o “greenwashing” ou branqueamento ambiental.


Qual é hoje o maior desafio da humanidade, no plano da biodiversidade?

Eu diria que é a crise de insustentabilidade global, ou seja, nós temos vindo a desenvolver-nos de uma forma fantástica, com grandes avanços tecnológicos, económicos e sociais de todo o tipo, mas com um custo, e esse custo é a degradação da atmosfera, chamamos-lhe alterações climáticas e poluição, a degradação dos territórios e a degradação dos mares.

De uma forma mais simples. Nós vivemos num planeta que tem uma camadinha à volta, chamada biosfera, que é onde tudo acontece: o ser humano, a economia, a sociedade. Nós dependemos de uma biosfera em bom estado e dos serviços que ela nos dá para podermos viver, para termos água, alimentos, etc. Mas estamos a degradar esses serviços, por isso, este é um problema que engloba as alterações climáticas, a poluição, a ineficiência nos recursos e a perda de natureza e biodiversidade.

A biodiversidade ainda tem pouco destaque?

O grande momento para a biodiversidade é estar a ser cada vez mais reconhecida como estando indissociavelmente ligada ao resto dos problemas, e como sendo preciso mudar o nosso rumo no sentido de regenerar o que temos vindo a destruir.

Temos metas concretas para cumprir também nesta área?

Passámos a ter. Precisamente uma das coisas que diferenciava a política climática da política de biodiversidade é que a quantificação e as metas eram mais fáceis de estabelecer e de medir nas alterações climáticas. Isso mudou com dois elementos: o pacto ecológico e a estratégia europeia de biodiversidade.

O pacto ecológico é ainda a grande diretriz da política europeia neste momento, veio dizer que devíamos tratar a perda de biodiversidade com o mesmo grau de importância que as alterações climáticas. A União Europeia, se quer liderar na matéria, tem de dar o exemplo.

Como tal, foi aprovada uma estratégia europeia de biodiversidade a 2030, cuja grande novidade em relação às anteriores é ter mais quantificação: metas quantificadas para áreas protegidas, para restauro da natureza, para redução do risco e uso de pesticidas, para redução da perda de nutrientes, para agricultura biológica, etc.

São metas reconhecidas fora da Europa?

Esta quantificação foi feita a nível europeu e, felizmente, veio a ser legitimada pelo facto de em 2022 o mundo, em negociações na Cimeira de Biodiversidade, ter aprovado um acordo global para a biodiversidade que, precisamente, vai no mesmo caminho: metas quantificadas para proteção, restauro, pesticidas, nutrientes, financiamento, evitar subsídios perversos, etc.

E quem faz ou como é que se faz essa fiscalização e monitorização no terreno?

De várias maneiras. Há certas medidas de biodiversidade que exigem “bota no chão”, ir lá ver o que se passa. Mas há muita informação sobre ecossistemas e biodiversidade que se pode obter, por exemplo, por imagens de satélite, sobre coberto vegetal e florestal, que permite, com vários métodos, tirar informação muito pertinente.

Estamos a ir pelos dois lados: com mais tecnologia, sensores, inteligência artificial, drones, satélites; mas também com a necessidade de fazer uma monitorização no terreno quando é necessário, qualidade do solo, qualidade da água ou outra matéria.

Já é possível fazer um balanço, apesar da meta ser 2030?

Posso dar duas ideias. Por exemplo, nas metas quantificadas quanto a proteção, queremos chegar a 30% das áreas protegidas até 2030, tanto em mar como em terra. Ora, em terra, entre as áreas protegidas de origem europeia, como a Rede Natura 2000 e as áreas protegidas nacionais, não estamos muito longe, estamos por volta dos 26% e os Estados-membros estão a vir com ofertas para mais. Já no mar andávamos, salvo erro, nos 12%, estou a falar de memória, portanto, aí há bastante mais trabalho a fazer.

Outro exemplo, que acho que é muito notável, é que no mundo político, a natureza passou a ganhar uma relevância nova em torno da controvérsia sobre a lei de restauro da natureza, em que parte do setor político se opôs a ela e isso levou a um grande confronto, também neste contexto da agitação no mundo agrícola, das eleições europeias, mas veio a ser aprovada. Portanto, temos a primeira lei de restauro da natureza do mundo, é um regulamento, será de aplicação imediata e os Estados-membros têm dois anos para fazer os seus planos nacionais de restauro, quer em ecossistemas protegidos, mas também ecossistemas agrícolas, florestais, recuperação de polinizadores, cidades, meio marinho, com metas quantificadas para 2030, 2040, 2050.

Apontou medidas polémicas, que ainda têm de ser implementadas. Temos o copo meio cheio ou meio vazio?

Algum progresso há. Se o copo está meio cheio ou meio vazio, não lhe sei dizer, mas vamos tentando.

Sei que tem a responsabilidade de falar em nome da União Europeia e de todos os Estados-membros, mas como é que se posiciona Portugal nesta matéria?

Tem de ser o Governo português a responder-lhe. Posso dizer que prestei atenção ao que a Ministra do Ambiente veio dizer, desde logo, o apoio à lei de restauro da natureza e o anúncio de que Portugal vai, não só fazer o plano de restauro, mas também coordená-lo com Espanha, o que parece uma boa ideia. Não tenho razões para crer que a matéria não possa ser bem abordada por Portugal, se houver vontade política e mobilização de meios para o efeito.

No Fórum do Banco Central Europeu, que se realiza anualmente em Sintra, foi apresentado este ano um artigo sobre o impacto da biodiversidade na economia, o que foi muito comentado porque não são temas habituais nestes encontros da alta finança. A presidente do BCE avisou que este é o futuro. Concorda? Até que ponto é que temas como a biodiversidade impactam na economia?

Impactam brutalmente. Essa pergunta é muito interessante porque, se a nível político estamos quase num relativo contraciclo contra o pacto ecológico, no mundo financeiro e das empresas, pelo contrário, há a consciência clara de que não basta medir emissões de CO2, há um problema mais vasto que isso, inclusive a biodiversidade.

A que se deve esta separação?

Eu atribuo isto a vários fatores. Por exemplo, um indicador interessante, o Fórum Económico Mundial, que não é suspeito de ser uma ONG ambientalista, na análise global de riscos para os negócios, sobe de ano para ano a importância de clima e biodiversidade, ao ponto que há 10 anos os 4 maiores riscos são todos impactos climáticos, perda de biodiversidade, alteração dos sistemas de controle da terra, e assim sucessivamente.

As empresas prestam atenção ao que lhes diz o Fórum Económico Mundial, nomeadamente, que mais de 50% do PIB mundial depende, muito a moderadamente, de serviços de ecossistemas. O Banco Central Europeu, em 2023, apresentou um estudo em que diz que, na Europa, 70% da atividade económica depende muito de serviços de ecossistemas.

Os empresários também são sensíveis ao facto destes alertas estarem quantificados?

Esta noção de haver, por um lado, impactos da atividade económica, mas também riscos e dependências do que podemos chamar capital natural em geral, e em particular também natureza e biodiversidade, está muito palpável e há cada vez mais pedidos de dados, métricas e metodologias, para uma empresa poder converter em números simples de conceber para a estratégia empresarial.

As instituições financeiras, como o Banco Central Europeu e outros, estão muito em cima deste tema e do desenvolvimento de metodologias. Também na Direção-Geral do Ambiente, através da plataforma Negócios e Biodiversidade, que curiosamente vem da Presidência portuguesa de 2007 onde se lançou a ideia, temos apoiado as empresas a desenvolver metodologias de contabilidade capital natural e comparar métodos para dar esses instrumentos para definirem como manter-se ativos no negócio.

Mas ainda se confrontam com alguma resistência, por exemplo, dos agricultores?

Sempre que falei com agricultores ou organizações de agricultores, nunca encontrei quem dissesse que está tudo bem, que não é preciso mudar nada. São os que sofrem os impactos das secas, das cheias, sabem muito bem que algo tem que mudar. A divergência está mais a que ritmo, com que apoios e com que respeito pela atividade.

Às vezes, também se tem apontado o dedo à agricultura por destruir tudo. Ora, o mundo é muito diversificado e há agricultura muito destruidora, mas há uma agricultura regeneradora, também. Devemos apoiar sobretudo aquela que até dá serviços a ecossistemas, além de fibras e alimentos, e que por vezes é menos competitiva, por isso mesmo.

Há aqui toda uma reconfiguração do mundo agrícola, que é muito importante, e que só lá vai com convergência e diálogo e não com braços de ferro.

Acha que é esse o caminho que está a ser feito ou ainda tem de ser afinado?

O caminho do diálogo está claramente feito. Houve manifestações em toda a parte, prestou-se muita atenção a elas, simplificou-se alguma condicionalidade ambiental da política agrícola comum, mas sobretudo a Presidente da Comissão (Europeia) lançou um “diálogo estruturado”.

Espera-se pelos finais do verão para esse relatório aparecer, altura em que uma série de agentes do mundo agrícola e ambiental se sentam à mesa com as suas diferenças, em busca da convergência. Esse documento, esse relatório, espera-se que venha a ter impacto na própria definição da política agrícola comum e do que se possa seguir.

O caminho está lançado e todos os que apostam em confronto estão enganados, não nos leva a lado nenhum.

A economia verde já provou ser muito mais do que uma moda, as pessoas estão despertas para a necessidade de proteger o ambiente e para estas questões da biodiversidade e até já investem em produtos sustentáveis. No entanto, ainda há pouca transparência nestes produtos e no que as empresas estão a fazer, o que é que é preciso mudar?

Já começou há muito tempo esta ideia de pôr umas etiquetas: “sou sustentável”, “sou verde”, sou isto e sou aquilo, ao ponto de ter-se tornado muitas vezes uma confusão para o consumidor.

A Comissão Europeia apresentou uma proposta, “Green Claims Initiative”, traduzida seria Iniciativa para as Intenções Verdes. Regulamenta a metodologia obrigatória para demonstrar declarações como “sou verde” ou “sou sustentável”.

Por outro lado, também lançamos o que chamamos a taxonomia europeia. O que é este palavrão? É uma identificação dos tipos de investimento que são verdadeiramente verdes, os critérios que devem ter nas mais diversas áreas, inclusive ligados ao restauro da natureza, etc.

Há uma série de apoios para que chegue mais transparência ao cidadão e ao consumidor, para que possam fazer as suas escolhas informadas, através de uma etiqueta ou de outra forma qualquer.

Estas medidas são suficientes para garantir a informação, transparência e segurança ao consumidor de que aquele produto é mesmo verde, como diz?

A Green Claims Initiative, se aprovada e respeitada, dá consideravelmente essa garantia. Não há sistemas perfeitos, digamos que é um percurso que se tem de fazer.

Também me parece que a sociedade civil, na sua capacidade de também ela fiscalizar, organizar-se, verificar o que aquela empresa está a dizer ou este produto está a reclamar, se é bom ou se é mau, é algo que deve também fazer.

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