Em Portugal as mulheres ganham em média menos 3600 euros por ano do que os homens. Nos cargos de chefia a diferença é ainda maior. O Fórum Económico Mundial afirma que a nível global a igualdade salarial vai demorar mais de 200 anos a atingir. Na véspera do Dia da Mulher, a secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, fala sobre estes e outros desafios.
A Comissão Europeia (CE) apresentou nesta semana a Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025. Que comentário lhe merece esta estratégia?
Esta estratégia era esperada e do que podemos conhecer os principais eixos e prioridades estão alinhados com as nossas prioridades em matéria de política pública de igualdade. Há reforço do combate à violência – em 2021 faz dez anos a Convenção de Istambul e nesta estratégia este crime está bem presente, com medidas concretas. Depois, temos o ataque aos estereótipos de género, sobretudo com campanhas dirigidas aos mais jovens porque sabemos ser aí que se reproduz um conjunto de representações sobre o papel social de mulheres e homens que depois determinam um leque de problemas que vai da violência às desigualdades no mercado de trabalho – um eixo fundamental também da Plataforma de Pequim, que faz 25 anos. Há ainda uma grande preocupação coincidente com a nossa na área da segregação sexual das profissões e escolhas educativas que decorre dos tais estereótipos de género e com impactos na desigualdade e discriminação salarial. É bom ver que esta estratégia combate em força a segregação horizontal nas profissões e escolhas, nomeadamente, apontando o dedo à subrepresentação de mulheres nas engenharias e tecnologias, áreas do futuro e daquilo que é a transição digital. E há ainda um trabalho no domínio da transparência salarial como caminho mais rápido para combater a discriminação salarial que penaliza a mulher.
Em Portugal as mulheres ganham em média menos 3600 euros do que os homens, é uma diferença de 20% – números de 2018. Houve evolução em 2019?
Só podemos reconhecer as dimensões da desigualdade com dados e por isso o caminho da lei foi muito relevante. Tivemos em junho os primeiros dados do barómetro, que contabilizam todos os rendimentos (salário fixo e extras), e tínhamos 18% de desigualdade – que se agudiza nos quadros superiores. É um problema persistente que procuramos resolver.
A lei que obriga as empresas a publicarem as diferenças salariais de género e a entregarem essa informação também aos trabalhadores entrou em vigor há um ano. Que resultados há?
O novo direito criado tem que ver com essa possibilidade de solicitar um parecer à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego se acharem estar a ser alvo de discriminação por serem mulheres. Os dados do balanço serão apresentados no primeiro semestre deste ano, conforme previsto, indicando níveis de disparidade salarial de cada empresa a partir dos relatórios únicos entregues pelas empresas ao GEPE. Só então poderemos notificar as empresas, através da CIT e da ACT, para perceberem de onde resultam essas disparidades, que fatores estão na sua origem e estratégias para os corrigir, que passarão muito necessariamente pelo que a comissária europeia estabeleceu nesta agenda da transparência salarial. A lei portuguesa prevê também esta dimensão de os sistemas de avaliação de funções estarem obrigatoriamente assentes em critérios objetivos e não enviesados segundo o género. É o caminho que prosseguimos de forma muito alinhada com o que a CE propõe.
Vídeo. Mulheres nas administrações do PSI20: “São 21%, há um aumento de 9 pontos”
O acesso a cargos de topo, nomeadamente nas empresas do PSI20, ainda é um desafio. A maioria das administrações continuam a ser clubes de cavalheiros. Há medidas verdadeiramente capazes de mudar isto?
O que temos visto é que as políticas de ação positiva têm sido o grande motor de mudança. Aliás, os resultados que já temos com a lei 62/2017 – e que se direcionou às cotadas e às empresas do Setor Empresarial do Estado e do Setor Empresarial Local – mostram um aumento de vários pontos percentuais. No caso das cotadas são nove pontos desde que a lei entrou em vigor, em janeiro de 2018, na presença de mulheres nas administrações. Temos hoje 21%.
Muito aquém de um terço.
Mas já na meta para 2020, que eram os 20%. Esta evolução é muito importante e impactante.
Mas continua a não haver praticamente mulheres presidentes.
Esse é um problema, sim. A mudança é gradual e o ritmo intensificou-se… Temos a certeza de ser esta a política certa, porque com a autorregulação não conseguíamos o avanço que tivemos. Por isso decidimos logo em 2018 ampliar a abrangência desta política de representação equilibrada de ambos os sexos na Administração Pública e nas instituições públicas e Ensino Superior, e propusemos a revisão da Lei da paridade 2016, que se direciona aos cargos na vida política, estabelecendo como limiar os 40% em vez dos 33% e impede que seja possível pagar uma coima para não cumprir a lei. E tivemos já impactos consideráveis. Temos hoje níveis de representação das mulheres no Parlamento Europeu de 43%, na Assembleia de 38,7%, nas autarquias de 33%.
É mais fácil impor essas regras para o setor público do que para o privado?
As políticas públicas têm de ser desenhadas para ambos. Nós, designadamente na Administração Pública, vemos uma evolução, portanto as indicações são de respeito pela paridade e temos registado aumentos na presença de mulheres, nomeadamente nos primeiros graus.
Qual é a diferença salarial média de género no setor público?
Não tenho esse dado, mas é importante desconstruir a ideia de que só há desigualdade de género no setor privado. Na minha vida anterior fiz muitos trabalhos e auditorias em municípios em que essa era uma das dimensões de análises e ao contrário da expectativa, a desigualdade existia e era mais significativa nos técnicos superiores. Porque há aqui pesados vários indicadores: desde logo o facto de as mulheres fazerem menos horas extraordinárias, estarem colocadas em categorias mais desvalorizadas… isto também é consequência da tal segregação das profissões e por isso temos de intervir na raiz do problema.
O boom tecnológico, sendo esta uma área maioritariamente masculina, tem dificultado esta luta?
É uma área muito importante e a que estamos a dar muito destaque em projetos mas também no domínio da Ciência Viva, trabalho dos centros tecnológicos, etc.: a questão de que a desvantagem das mulheres seja atendida.
Mas é uma desvantagem ou são as mulheres que não procuram essas áreas?
Esse era o argumento que servia para a política… que as mulheres tinham menos interesse. Mas não é verdade, o que vemos é que desde as escolhas educativas que há uma educação para profissões que são tipicamente de rapazes ou de raparigas. Nós lançámos um projeto, o Engenheiras por Um Dia, que procura colocar este tema na agenda e desconstruir isso trabalhando com escolas, universidades e empresas – nomeadamente das engenharias e tecnologias – para dissipar a ideia ainda muito presente de que isto são áreas profissionais para rapazes. Lembro-me sempre de uma aluna que ganhou o prémio de mérito ao fazer o 12.º com a melhor nota do concelho e que escolheu seguir Engenharia Aeroespacial e na entrega dos prémios lhe perguntaram porque, tendo ela tão boas notas, não tinha seguido para Medicina. Porque se associa muito mais a Saúde, a Educação, a Ação Social a áreas de mulheres. Por isso há decréscimo na escolha e no mercado de trabalho – o que é preocupante. Aliás, o índice do Instituto Europeu para a Igualdade de Género destacou Portugal como o país que mais avançou nos últimos anos, muito à conta das novas leis de paridade e representação de representação equilibrada, com bons resultados em indicadores como o conhecimento – porque as mulheres em Portugal são mais detentoras de diplomas de ensino superior e evoluiu mais essa percentagem do que a de homens entre 2005 e 2017… As mulheres chegam mais longe com bons resultados. Mas ao nível da segregação das escolhas estamos pior.
Tem que ver com questões de maternidade e de perceção de que é às mulheres que compete acompanhar os filhos, por exemplo?
Sim, associa-se as mulheres às questões de cuidado, de domesticidade – tem que ver com aquela estereótipo de género que a União Europeia quer combate intensamente agora nestes cinco anos.
Faz-se o suficiente nas empresas para o combater.
Não se faz o suficiente e por outro lado também não se reconhece o problema maior.
A urgência demográfica do país.
Exatamente, ainda agora tivemos indicação, pelo diretor-geral do emprego da CE, de que estamos a perder população ativa na Europa.
E Portugal poderá perder até 40% nos próximos 50 anos.
Sim. Obviamente são cenários, mas é preciso tê-los em atenção. Por isso um dos eixos prioritários do programa do governo são as questões demográficas e uma aposta na conciliação entre vida profissional, pessoal e familiar. Lançámos em dezembro de 2018 o 3 em linha que previa medidas laborais, com intervenção nas empresas, não premiando as que tivessem uma prática ou outra mas todo um sistema de gestão certificável de promoção da conciliação. Começámos com 37 organizações, hoje temos 58 a adotar esse sistema. Temos já dez empresas certificadas. É uma dimensão fundamental. Por isso nesse programa 3 em linha temos medidas que têm que ver com a mudança de prática nas organizações. A própria lei 62 que obriga à representação equilibrada também estabelece que as empresas estabeleçam planos que reduzam as desigualdades diagnosticadas.
Há ainda a questão dos equipamentos sociais e de apoio à família. E no ano passado o governo lançou mais um apoio ao investimento para reforçar a cobertura em creche nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto – porque estamos à frente das metas de Barcelona, que previam uma taxa mínima de 30% na cobertura de resposta a crianças em primeira infância, mas nessas áreas metropolitanas temos défice de resposta.
Não há creches suficiente para as crianças.
Exato. Estamos a prever ainda reforçar o investimento no apoio aos idosos e pessoas dependentes, etc.
No ano passado, houve 35 mortes associadas a violência doméstica. Não temos sido capazes de reduzir este número negro – e aqui estamos apenas a falar das mortes. Porquê? O que está a falhar no combate?
O combate falha enquanto na base não houver igualdade, enquanto não eliminarmos a posição de subordinação das mulheres na sociedade relativamente aos homens – é o que nos diz a Convenção de Istambul.
Destas 35 mortes, 26 são mulheres, duas crianças e o resto homens…
Os homens são muitas vezes por outros homens, por acompanharem mulheres… mas tem que ver com este problema. No dia 7 de março do ano passado assinalámos um dia de luto pela intensidade de homicídios que tiveram um efeito de despertar social para a intolerabilidade deste crime que, sendo conhecido, escalou em termos mediáticos – o que tem efeitos positivos, porque só o reconhecimento e a sensibilização nos permitirão reduzir estes números intensificando a nossa vigilância social e a resposta das instituições – tribunais, forças de segurança, estruturas de apoio às vítimas. E os media têm tido um papel fundamental de dar informação sobre as respostas que existem.
No final do ano passado admitiu que há falhas no apoio de emergência a mulheres vítimas de violência doméstica. O que é que o Estado vai fazer para as apoiar?
Estamos a trabalhar em todas as frentes, quer na resposta em 72 horas após denúncia – está praticamente aprovado o manual -, também os autos de notícia destes crimes, estamos a preparar um guia de normas para profissionais que intervêm junto de crianças e jovens vítimas de violência doméstica, foram criados gabinetes de apoio, intensificou-se a cobertura territorial das respostas… e a componente de formação, juntando todas as áreas. E procuramos fechar cada vez mais esta rede para apoiar as mulheres vítimas.
Continuarmos a deixar agressores aguardar julgamento em liberdade é um facto que não ajuda… E acabam por ser as vítimas a ter de se deslocar – para casas de apoio, por exemplo, longe de filhos, família, amigos… está longe de ser a situação ideal. Como se altera esta realidade?
Os dados indicam que no último ano e fruto deste maior alerta social, o sistema tem reagido de forma mais punitiva para os agressores, com mais medidas de vigilância eletrónica, quase duplicaram as medidas de teleassistência… é sinal de que o sistema está mais consciente de que tem de atuar, protegendo e usando todos os métodos que existem.
O Bloco de Esquerda recomendou nesta semana ao governo a criação de uma estratégia de combate ao racismo. O governo tem abertura para avançar?
Sim, temos planeado um conjunto de intervenções e nomeadamente um passo decisivo que é a autonomização da própria Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial – que acolhe queixas e atua de forma integrada, com representantes de várias áreas, do governo, deputados, de associações antirracistas, etc. A lógica é aumentar a capacidade de intervenção da comissão, amplificando o conhecimento dos cidadãos daquilo que são os direitos e o que está previsto na lei para além do compromisso estabelecido pelo programa do governo de um Observatório em matéria de racismo, que é fundamental para monitorizar.
O Observatório do Racismo – que funções irá ter?
Conhecer, dar a conhecer e compreender as raízes das desigualdades e situações de discriminação em razão da origem étnico-racial das pessoas. Há situações de forte desigualdade, faça-se de racismo estrutural que penaliza a vida das pessoas de alguns grupos sociais em educação, emprego, habitação. Só conhecendo mais e melhor e monitorizando estes processos essa informação pode ajudar e apoiar a decisão política com medidas específicas para resolver essas situações.
O país deve ponderar medidas de descriminação positiva no que diz respeito ao acesso, por exemplo, ao emprego de cidadãos de minorias étnicas?
Prioritário é conhecer melhor os obstáculos. Temos medidas já desencadeadas de capacitação de grupos específicos que podem assumir-se como medidas de ação positiva: as bolsas universitárias ou do secundário para estudantes de etnia cigana, quando criamos projetos em desenvolvimento no terreno que promovem a inserção sócio-profissional dessas comunidades…
Mas isso não devia acontecer em primeiro lugar nas administrações públicas? Haver maior representatividade numa loja do cidadão, por exemplo?
Essa questão está presente logo no nosso Parlamento, vimos a entrada neste ano de três mulheres afrodescendentes e esse é um avanço.
Já tínhamos uma ministra da Justiça.
Sim, mas em representação parlamentar, são passos importantes. A representatividade, que é uma questão legítima e muito presente por exemplo nas associações antirracistas, é um eixo fundamental para garantir a igualdade.
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