Casado, com filhos, professor do ensino secundário no Nepal, Kamal deixou tudo por um trabalho na agricultura em Portugal. Uma agência de recrutamento foi buscá-lo ao seu país. Passou alguns meses na Polónia, a trabalhar num aviário. E apanhou, de lá, um autocarro com destino às estufas de frutos vermelhos que abundam hoje no sul português. Kamal, nome fictício, veio para ganhar o salário mínimo – e reparti-lo com recrutadores, deixando ainda parte para as refeições e para pagar a cama da camarata onde dormia. No fim, sobrará metade.
A agricultura portuguesa continua a atrair, sazonalmente, imigrantes do Nepal, do Bangladesh, e também muitos do Leste europeu como Ucrânia ou Bulgária. São números que ficam fora das estatísticas do INE sobre o rendimento dos trabalhadores por conta de outrem na agricultura. Os últimos dados, conhecidos este mês, mostram que os salários agrícolas foram os que mais cresceram no ano passado entre todos os setores de atividade (ver infografia). Subiram 9,5%. Na região de Lisboa, o salário médio agrícola ultrapassou pela primeira vez os mil euros, aumentando 43%; no Algarve cresceu 27% e no Norte aumentou 10%.
A história do rendimento do trabalho agrícola cresceu, nos anos recentes, em dois campos sem simetria. O lado mais soalheiro, o que vê estes rendimentos entre os que mais crescem, é explicado pela Confederação dos Agricultores Portugueses (CAP), que vê convergir um aumento da produtividade e a escassez de mão-de-obra, bem como a subida do salário mínimo, que este ano ficará nos 600 euros.
A CAP destaca que “o setor está a ganhar escala, muito pela dinâmica das exportações, nomeadamente do setor das frutas, pequenos frutos e legumes – por exemplo na região Oeste e Lisboa -, assim como pelo grande impulso originado pela nova realidade na região do Alqueva”, segundo explica o presidente, Eduardo Oliveira e Sousa. E com o aumento de escala, também puxar pelas qualificações dos trabalhadores, colhem os salários, defende. “Todos estes fatores contribuem, necessariamente, para esta subida dos vencimentos médios dos nossos trabalhadores”.
De fora, admite a CAP, fica a realidade do trabalho sazonal. Com uma população de trabalhadores agrícola cada vez menor – pouco mais de 120 mil em 2011- o setor insiste na necessidade de recrutar fora. “Quanto à mão de obra sazonal, a questão é mais preocupante e apenas resolúvel através da imigração de trabalhadores de países terceiros”, diz a organização.
Rendimento invisível
A dificuldade em obter vistos de trabalho, quer junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, quer nos serviços consulares no exterior, é um dos entraves ao recrutamento, mas também mais um dos fatores a empurrar mão de obra para a clandestinidade, diz Cláudia Pereira, coordenadora do projeto Imigração e Exploração Laboral do ISCTE-IUL.“Estando indocumentados é muito difícil a própria empresa ter todos os procedimentos legais”.
A investigadora tem vindo a acompanhar nos últimos anos grupos de imigrantes nepaleses que chegam ao país para trabalhar nas estufas do Algarve para intermediários das explorações agrícolas. Cláudia Pereira recolheu cartões de mais de 40 dessas empresas que se oferecem para trazer mão de obra para os campos do país. Algumas serão legais. A maioria não. E os valores que oferecem podem também ser muito diferentes.
“Enquanto algumas empresas – nós vimos três, na verdade – pagavam à hora seis euros, há muitas – e nós temos mais de 40 cartões de agências intermediárias – que oferecem trabalho fora da Europa por menos de seis euros, e algumas por 3,45 euros”, descreve a investigadora sobre dados do trabalho que em breve será publicado.
Mas não são ainda esses os valores finais que os imigrantes levarão de volta a casa no fim da campanha. “A agência de recrutamento recebe quase metade. Com o dinheiro que o trabalhador recebe, de dois euros ou menos, ainda tem de pagar comida e às vezes ainda tem de pagar o aluguer da camarata. É dramático”, diz a investigadora.
Ainda assim, este rendimento invisível e ceifado pela metade, poderá será este verão maior do que foi há um ano, nos casos onde há efetivo emprego legal. Por um lado, porque aumentou o salário mínimo. Por outro, porque desde agosto estes trabalhadores deixaram de enfrentar uma retenção obrigatória de rendimentos de 25% pelo facto de serem oriundos de países de fora da União Europeia. O fim da taxa foi conseguido pela CAP junto do governo, destaca Cláudia Pereira.
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