Em seis anos e meio, são já mais de 19 mil os novos residentes chegados a Portugal via vistos gold. Só dois em cada 100 foram chumbados. As autorizações recusadas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ficam-se pelas 387, apenas 2% do total, apesar dos diversos alertas, desde a ONU à Comissão Europeia, para o facto de, uma vez que não se consegue garantir a origem dos fundos, os vistos portugueses facilitarem a lavagem de dinheiro, a fuga ao fisco e poderem pôr em causa a segurança da UE. O Parlamento Europeu vai votar no final deste mês uma proposta pela abolição, ou não, deste tipo de regimes.
Portugal está dividido sobre a matéria. A Assembleia da República tem vindo a chumbar propostas para acabar com os vistos gold. O governo admite rever as regras – e é isso que recomenda a Comissão Europeia -, mas diz que não quer deitar o regime fora que tem feito entrar em Portugal nos cofres do país milhões de euros vindo do estrangeiro. Foi por esta porta que entraram mais de 4,34 mil milhões de euros de investimento, injetados em força no imobiliário quando o setor estava ainda deprimido.
Mas se as estatísticas públicas mostram um quadro de sucesso relativo, os dados habitualmente não publicados, os das rejeições, parecem apontar no sentido das maiores críticas feitas ao sistema: a fraca capacidade de fiscalizar. Desde 2012, só 387 pedidos de visto gold foram afastados, segundo informações pedidas ao SEF. Os motivos são contados a traço muito leve: a rejeição teve lugar por “não apresentarem os documentos solicitados e/ou não comprovarem o preenchimento dos requisitos legalmente exigidos”, diz o SEF.
O sucesso dos vistos gold é relativo porque, apesar de tudo, falharam os esforços para encaminhar o dinheiro para setores produtivos, cultura ou ciência. Até aqui, só 15 vistos criaram um mínimo de 10 postos de trabalho (ou oito, em zonas do Interior). O grosso do dinheiro foi para um mercado imobiliário já aquecido.
Segundo o SEF, o investimento caiu em setores diversificados: agricultura, construção civil, serviços, informática, formação profissional e apoio à educação, indústria têxtil, numa agência de exportações e importações, e ainda numa empresa de montagem de estruturas metálicas, metalomecânica, eletricidade. Em mais de sete mil vistos entregues a investidores (outros 12 mil foram para os familiares destes), 380 foram obtidos pela transferência de capitais.
Portugal tem conseguido manter-se fora da lista dos regimes considerados de maior risco – Malta e Chipre são a principal preocupação entre os 18 países europeus com regimes de atribuição de residência ou cidadania a troco de investimento. Mas não está livre de críticas e os avisos sucedem-se desde 2017: da Comissão de Direitos Humanos da ONU, contra a perda de direitos na habitação; do Grupo de Ação Financeira, pela malha aberta para branqueamento de capitais; da OCDE, pela facilitação da evasão fiscal; da Comissão Europeia, idem, e porque está em causa a segurança no espaço Schengen; e do Parlamento Europeu, o último apontar baterias à venda de residência, na passada quarta-feira. Coincidência ou não, os indeferimentos passaram a ser mais expressivos precisamente desde há dois anos, quando surgiram os primeiros alertas e os inspetores do SEF passaram a seguir um manual para instruir processos.
De onde vem o dinheiro?
A TAX 3, comissão especial de Estrasburgo sobre crimes financeiros, evasão e elisão fiscal leva a votação, no próximo dia 25, um relatório que “apela aos Estados membros para eliminarem gradualmente todos os regimes de residência e cidadania por investimento tão breve quanto possível” e recomenda que, até lá, “garantam devida diligência reforçada” sobre os candidatos no combate ao branqueamento de capitais.
É essa uma das principais falhas apontadas ao regime português. No acesso a visto, os candidatos devem entregar um certificado de registo criminal do seu país, ou daquele onde viveram no último ano, assim como uma procuração para que este seja pedido também em Portugal e declarações da Segurança Social e Autoridade Tributária que confirmem a ausência de dívidas no país. Ao SEF, cabe ainda consultar o serviço de informações Schengen. Mas “além destas verificações, não é feita nenhuma diligência específica quanto à origem dos fundos” que os candidatos se propõem investir, segundo uma avaliação publicada no início deste ano pela Comissão Europeia.
Nos movimentos financeiros que dão origem ao visto gold, as autoridades portuguesas confiam nos bancos e na norma de reporte comum que estes aplicam para conter eventuais tentativas de lavagem de dinheiro. Mas o último relatório sobre Portugal do Grupo de Ação Financeira (FATF-GAFI), organização internacional que vigia a malha de combate ao branqueamento, dava os bancos como pouco capazes de desempenhar o papel.
No documento, de dezembro de 2017, assinalava-se que “nenhumas recomendações ou medidas específicas foram desenvolvidas ou divulgadas aos agentes relevantes do setor privado (por exemplo, imobiliário ou bancário) para o ajudar a definir ações preventivas adequadas para monitorizar o perfil do investidor e a forma de melhor verificar a origem dos fundos investidos”. “Há controlos regulares pelo supervisor bancário, mas são feitos posteriormente, depois de já ter sido feito o investimento”, juntava.
As rotinas que faltam
A OCDE tem vindo a destacar o mesmo tipo de riscos no que diz respeito à evasão fiscal. Os vistos gold, diz, oferecem com a residência uma oportunidade de contornar o controlo dos mecanismos de troca automática de informações fiscais: a possibilidade de não reportar todos os locais onde os indivíduos têm ou tiveram residência fiscal junto dos bancos, fazendo com que não haja transmissão dos seus dados bancários para jurisdições onde estes seriam relevantes. A organização recomenda, por isso, que os bancos lancem novas perguntas na abertura de contas: por exemplo, para saber se o cliente tem direito de residência noutras jurisdições.
Mas há mais falhas apontadas aos procedimentos portugueses. Não há rotinas para garantir a limpeza do cadastro aferida de início na entrega do visto. “Não há verificações sistemáticas posteriores para monitorizar abusos. As verificações apenas ocorrerão com a suspeita de atividades ilícitas”, destacam os documentos da Comissão Europeia. A lei obriga também a que estes novos residentes-investidores permaneçam por ano no país um mínimo de sete dias, no primeiro ano, ou 14, após a primeira renovação. Mas “nem a lei, nem os regulamentos referem como este requisito de residência pode ser provado”. Além disso, pelo menos do ponto de vista das disposições legais, Portugal não tem meios para confirmar que são cumpridos os requisitos adicionais de ter seguro de saúde, garantia de alojamento e de meios de subsistência.
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