//“Sociedade civil deve ser mais intransigente com a fraude e corrupção”

“Sociedade civil deve ser mais intransigente com a fraude e corrupção”

Até 2030 deverão chegar a Portugal mais de 70 mil milhões de euros em fundos europeus. Para já, começou a entrar nos cofres o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a chamada “bazuca” que supera os 16 mil milhões. São muitos zeros, e quanto maior o valor, maior o risco, avisa o presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), António João Maia.

Em entrevista à Renascença, o economista e professor de Ética do ISCSP questiona a eficácia do Portal da Transparência, onde o Governo convida os portugueses a seguirem a execução deste dinheiro. Lembra ainda que os riscos estão identificados, é preciso atuar, inclusive ao nível do Parlamento, onde as políticas contra a corrupção ainda aguardam para serem aprovadas.

São temas que se cruzam com o conteúdo do livro “Riscos de Fraude e Corrupção no Programa de Financiamento Europeu” (Editora Almedina), uma obra coordenada por António João Maia, com prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa, que será apresentada no final de outubro com a presença do Presidente da República.

Tem sido uma das vozes críticas sobre a estratégia nacional contra a corrupção. O que está a falhar?

Temos sido vozes críticas, mas construtivas ao mesmo tempo. O que me parece, e temos feito referência a esta questão já há uns anos a esta parte, é que é importante e necessário que haja estudos mais aprofundados sobre o fenómeno da corrupção em Portugal.

O que se vai conhecendo é, sobretudo, os casos mediatizados e é a partir daí que sentimos que, muitas vezes, o sistema reage. Mas sabemos que a corrupção é muito mais do que isso. Os casos que são mediatizados são, se calhar, uma gota do todo que é este problema. É necessário conhecer melhor o fenómeno, caso contrário, aumenta o risco de termos políticas públicas que visam preveni-lo sem que tenham o potencial de eficácia que poderiam ter.

No Parlamento nenhum dos diplomas na área da corrupção viu ainda luz verde, são exemplo a criminalização do enriquecimento ilícito ou a proteção dos denunciantes. Na sua opinião, o que está a travar este processo?

A Assembleia da República, enquanto órgão de produção legislativa, tem uma mecânica própria. Essa dinâmica depois traduz-se numa cadência natural, “normal”, de produção normativa. Se calhar há matérias que requereriam mais celeridade, a corrupção provavelmente será uma delas.

Não dispomos de dados para perceber se este atraso se deve ao andamento natural dos trabalhos. Mas há um aspeto importante, relativamente à questão que colocou: a importância de existir aquilo a que se chama a “vontade política”, e é muito mais do que aquilo que é verbalizado nos discursos, são sinais que efetivamente devem existir no sentido de se adotarem medidas realistas e exequíveis, que vão à procura de controlar o fenómeno.

Neste livro, “Riscos de Fraude e Corrupção no Programa de Financiamento Europeu”, dá exemplos de como controlar a corrupção: o Portal da Transparência e canais de denúncia. Pode elaborar?

O Portal da Transparência é, de alguma maneira, uma coisa que já existe, mas precisa de ser aprofundado. Há trabalhos que têm envolvido a Transparência Internacional, nomeadamente ao nível da gestão autárquica, se calhar pode ser alargada uma metodologia semelhante a toda a administração pública e aos vários ministérios, no sentido de informarem os cidadãos, de forma mais clara e percetível do que está a ser feito em prol do interesse público e com o dinheiro do cidadão, porque são os nossos impostos que são utilizados para o Estado exercer as suas funções.

Promover uma transparência efetiva, porque às vezes vamos aos sites e a informação está lá, mas com uma linguagem muito técnica e muitas vezes ocultada por trás de números e de percentuais. Ficamos sem perceber muito bem o que está ali por trás e se calhar a maioria dos cidadãos nem estão disponíveis para ir à procura desses dados, cuja leitura depois, às vezes, não é assim tão fácil.

“Fraude e corrupção zero não existe, é uma utopia”

E os canais de denúncia?

Sabemos que há uma diretiva europeia, que os Estados-membros têm de adotar até ao final deste ano (dia 17 de dezembro), a diretiva Europeia é muito clara: as estruturas de gestão do Estado e também as grandes empresas privadas devem dispor destes canais.

A ideia inerente a esta premissa é muito simples: estamos a falar de um fenómeno oculto. O que se conhece da fraude e da corrupção é muito mais do que é mediatizado, é aquilo que chega aos processos judiciais, mas que não é tratado de uma forma transversal e esse tratamento era muito importante, precisamente para ter o tal conhecimento um pouco mais profundo sobre a corrupção. Mas há sempre um conjunto de ocorrências que não chegam ao conhecimento de nenhuma instância, nem dos tribunais, nem das polícias, nem sequer são despistados internamente pelas organizações. Isto é assim, desde logo, porque quem pratica a fraude e a corrupção, naturalmente, vai ter todos os cuidados para suscitar o mínimo traço de suspeição, relativamente às situações em que possa estar envolvido.

Como estes fenómenos são tendencialmente ocultos, os canais de denúncia visam criar aqui uma outra possibilidade de desocultar algumas dessas situações, que de outra forma permaneceriam sempre nesse lado escondido. Agora, os canais de denúncia têm de ser devidamente ajustados, não pode valer tudo. Desde logo, é importante e necessário que se salvaguardem os nomes e a integridade dos envolvidos porque, num primeiro momento pelo menos, ainda não sabemos se aquilo que é denunciado pode ou não corresponder à realidade.

Mostrou aqui como é difícil o tratamento deste fenómeno. Estando nós na era das novas tecnologias, do algoritmo, da “big data”, não deveria ser mais fácil controlar a execução do dinheiro público e detetar estes fenómenos de corrupção?

De facto, a ferramenta informática oferece algumas soluções que poderão ser muito úteis. Naturalmente que também tem de haver cautela, quem acede à informação, quem faz a gestão da informação. São sempre critérios que têm de ser acautelados porque, no limite, ainda que sejam os tais sistemas informáticos depois a processar e a analisar a informação, a informação depois é utilizada por alguém. A questão é o alguém, que perfil têm estas pessoas, que cuidados devem ter, porque isto também pode ser objeto de riscos.

Quem ficar com esta informação, dentro de uma organização, fica com um poder muito grande e a diretiva europeia tem algumas indicações claras sobre os cuidados que as organizações não devem deixar de acautelar, para que os canais de denúncia sejam capazes de alcançar o que se espera deles e não que se transformem numa ferramenta persecutória dentro das organizações. Seria a pior perversidade que poderia suceder, numa má utilização deste instrumento.

Temos assistido aos apelos do Governo à população, para que acompanhe a execução do dinheiro de Bruxelas via online, através do tal Portal da Transparência. Confia neste sistema?

(sorrisos) Depende de como ele seja gizado. A questão do Portal da Transparência é como os instrumentos de prevenção de riscos de fraude e corrupção: devem existir, são importantes e necessários, mas devem depois tornar-se efetivos.

Aquilo funciona mesmo? Porque, se tivermos uma ferramenta de transparência, um portal de informação, um plano de prevenção de riscos que no papel está tecnicamente muito bem feito, mas depois não passa para o terreno, se as pessoas não conhecem ou não estão envolvidas, o risco de se tornar ineficiente e ineficaz é elevado. Será melhor que existam ferramentas que tecnicamente possam não ser as melhores, mas que as pessoas conheçam, se identifiquem com elas e que estejam envolvidas na sua concretização.

Essas ferramentas têm naturalmente o potencial de utilidade, ele está identificado e é conhecido, agora dependendo da forma como as organizações forem capazes de os dinamizar e de os pôr em prática.

A propósito dos fundos que vamos agora receber, têm sido anunciadas várias iniciativas para prevenir desvios, até ao nível presidencial. Serão suficientes? É este o caminho?

(sorrisos) Todos os instrumentos, se forem eficazes, são importantes. Por outro lado, não há instrumentos que se possam dizer, verdadeiramente, como perfeitos. A perfeição não existe em lado nenhum, então aqui ainda menos!

Não é possível imaginar uma organização com um conjunto de instrumentos de controle de tal maneira bom que possa assumir-se que o risco de ocorrer fraude e corrupção é zero, isto não existe em nenhuma organização, isto é uma utopia!

Todos os instrumentos são potencialmente bons, devem existir, mas também não podemos cair no exagero de quanto mais melhor, ter 50 instrumentos é melhor do que ter 49. Às vezes não é assim.

Podemos falar aqui também de códigos de ética e de conduta, que todos devem conhecer, dos manuais de boas práticas para cada uma das tarefas, sejam elas quais forem, e os planos de prevenção de riscos de fraude e de corrupção.

Tenho que insistir nesta questão, porque nesta fase só podemos falar de prevenção. A própria União Europeia tem um mecanismo anti-fraude, que tem sido melhorado, mas também ele é falível!

Falível, no sentido em que não há instrumentos perfeitos. Refere-se ao OLAF [Organismo Europeu de Luta Antifraude], é muito importante nas estruturas de controlo financeiro da União Europeia, a sua experiência tem sido importante relativamente à identificação de várias fases dos procedimentos de atribuição de subsídios e apoios financeiros e dos riscos que lhe estão inerentes em todas as fases dos processos (pré-processual, elaboração, candidaturas e execução).

Todas as fases têm riscos identificados, o OLAF tem vários relatórios bem como o Tribunal de Contas Europeu, que identificam essas fragilidades, esse foi um dos pontos que exploramos neste livro.

Vale a pena olhar para cada uma das fases dos procedimentos e verificar o que é que é preciso fazer, para lá do que outros organismos já fazem, e depois internamente as entidades de controlo – no caso de Portugal, a Inspeção-Geral de Finanças e outros – para acompanharem mais de perto os processos de atribuição de subsídios.

Olhemos para trás, porque estes relatórios destes organismos de controlo estão aí, identificam já muitas situações. Se elas estão identificadas, porque não aprender com elas, no sentido de apertarmos mais o controlo, relativamente a cada uma dessas fases dos processos.

Justamente, olhando para trás, há áreas mais sensíveis, suscetíveis ao desvio e à fraude?

Posso dizer, quase, que há uma relação direta entre o volume financeiro dos projetos e a probabilidade de riscos de fraude. Quanto mais for o “bolo financeiro”, maior a tentação para que pessoas menos íntegras gravitem ali à volta. Aliás, por isso, este pacote financeiro, que é de uma dimensão muito considerável, desde o primeiro momento toda a sociedade civil e também os organismos de gestão pública têm mostrado, pelo menos do ponto de vista discursivo, essas indicações de cuidado adicional que se deve ter relativamente a este acompanhamento.

Aquilo que se tem verificado é que Portugal criou aqui um conjunto de instituições que são importantes, são necessárias em termos de controlo, sem dúvida nenhuma, vamos ver depois na prática qual a eficácia da sua ação. É o nosso interesse de cidadãos que está em causa e a credibilidade das instituições.

“Portal da Transparência… Aquilo funciona mesmo? “

No livro aponta vários tipos legais de fraude e corrupção.

Quando falamos em gestão pública não há só o crime de corrupção, há um conjunto mais alargado de crimes, como a participação económica em negócio, o tráfico de influências, a apropriação de verbas, o desvio de fundos. Quando falamos de fraude, falamos desses outros crimes.

A fraude e a corrupção têm sempre estas duas grandes componentes: a oportunidade para acontecer e o índice de integridade de quem está numa determinada tarefa, neste caso no âmbito da gestão pública. Falar de fraude e corrupção é falar sempre deste binómio – falta de integridade e uma boa oportunidade.

A fraude e a corrupção estão na ordem do dia, não só devido ao elevado montante de fundos que vamos receber, mas também dado o histórico em relação à fraude e à corrupção que temos no país. Temos um défice de ética em Portugal?

Da minha experiência, tenho a perceção que os portugueses têm índices de integridade adequados. De uma maneira geral! Mas, haverá sempre, aqui ou ali, alguém menos íntegro. Como sempre houve.

Nos últimos anos, efetivamente, e bem, o fenómeno da fraude e da corrupção tem sido objeto de uma atenção maior, desde logo por parte da comunicação social. Todos os anos, são muitos os casos que vêm para a praça pública e isso é importante, porque consciencializa mais a sociedade de que tem um problema. Esse é um patamar a que ainda não chegámos, que é a própria sociedade civil, de alguma maneira, mostrar sinais de uma maior intransigência relativamente às situações de fraude e de corrupção que se vão conhecendo e depois são investigadas.

Eu acho que os portugueses não têm índices de ausência de integridade diferentes da média dos países europeus, sobretudo aqui do sul da Europa, e que as pessoas são tendencialmente íntegras. Mas, haverá sempre a possibilidade de haver alguém menos íntegro e, quando estamos a falar de gestão pública, as organizações não podem deixar de equacionar esta possibilidade, como alguma coisa a que todas estão expostas. Devem procurar, ao nível da gestão, encontrar soluções que afastem a possibilidade de fraude e de corrupção se, porventura, em alguma das funções que lhes é atribuída esteja alguém menos íntegro.

É uma tarefa que carece do envolvimento de todos e todos devem ser chamados a contribuir com sugestões, não numa perspetiva de que estejamos na iminência de termos de repente um número muito elevado de colaboradores com menor integridade, mas sempre com a consciência de que, a todo o tempo, podemos ter alguém menos íntegro, e se calhar já temos, ainda não foi é apanhado ou não teve ainda oportunidade para praticar alguma coisa menos adequada.

A partir do título do livro, “Riscos de Fraude e Corrupção no Programa de Financiamento Europeu”, consegue apontar uma percentagem para este risco no país?

Os riscos, se calhar, são elevados, desde logo pelo valor do programa em si mesmo. Por isso, todos os cuidados que possam ser acrescidos são importantes e necessários, o futuro o dirá, esperemos que tenhamos grandes sinais de ocorrências de fraude e percentuais muito elevados de valores aplicados em projetos distintos dos originalmente atribuídos. Esta foi a preocupação do Observatório, quando lançou este projeto.

Pela sua dimensão financeira, é um programa que está naturalmente exposto a riscos de fraude e de corrupção, com alguma dimensão.

Não arrisca uma percentagem?

É difícil. Espero que seja tão próximo de zero quanto possível, no ideal, zero. Mas, sabemos que na fraude e na corrupção a perfeição se calhar não existe. Por muito bons que sejam os instrumentos de controlo, poderá sempre haver alguém que tenha a capacidade de ultrapassar os mecanismos de controlo.

A fraude zero, sabemos que é utópico, mas devemos acreditar que é possível uma coisa próxima.

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