Um trabalhador obrigado a esconder-se numa sala frigorífica durante uma inspeção ou um empregador que cobra aos funcionários dinheiro para pagar multas foram alguns dos casos encontrados em Portugal e denunciados num relatório europeu sobre exploração laboral.
O documento, intitulado “Proteção dos trabalhadores migrantes da exploração na União Europeia: Reforço das inspeções nos locais de trabalho” e divulgado nesta quarta-feira, é da autoria da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA).
Em Portugal, a FRA encontrou casos diversos, tanto em lojas, como em fábricas, na construção civil ou na agricultura, tendo entrevistado 26 pessoas.
Encontrar formas de escapar ou, pelo menos, ser bem sucedido nas inspeções é algo a que muitos empregadores portugueses se dedicam, sendo comum a estratégia de esconder funcionários quando os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ou da Autoridade para as Condições no Trabalho (ACT) estão nas instalações.
Um dos casos relatados diz respeito a um trabalhador, em situação irregular, que foi obrigado a esconder-se numa sala frigorífica durante três horas e que depois precisou de receber assistência médica.
Um exemplo extremo entre os 13 casos detetados de trabalhadores, na Bélgica, França, Itália, Polónia e Portugal, que afirmaram que, enquanto decorriam as inspeções, eram obrigados a esconder-se na rua, nas casas de banho, arrecadações, jardins ou caves.
Por outro lado, uma agência de recrutamento em Portugal avisava os trabalhadores para dizerem, quando questionados pelos inspetores, que estavam contentes com o salário, o trabalho e as condições em que viviam.
Um empregador português do setor da construção civil só providenciava papel higiénico aos trabalhadores durante as inspeções, enquanto outros (em Itália, Portugal, Holanda e Reino Unido) ameaçavam os trabalhadores caso eles não acatassem as suas exigências, desde intimidarem-nos com despedimento, assustarem-nos com uma possível deportação ou mesmo ameaçarem retirar-lhes os filhos.
No que diz respeito às possíveis consequências das inspeções, os participantes num dos grupos de entrevistas em Portugal concordaram que, apesar de os empregadores poderem ser multados, quando uma situação de exploração laboral é detetada, a maior parte das vezes não há medidas consequentes contra os patrões, enquanto os empregados podem ser prejudicados.
O relatório da FRA é o resultado de entrevistas feitas em 2017 a 237 trabalhadores migrantes adultos, entre 133 homens e 104 mulheres, que afirmaram terem sido vítimas de exploração laboral entre 2013 e 2017, sendo que 175 eram oriundos de 40 países terceiros, enquanto os restantes 62 vinham de países membros da União Europeia.
A investigação foi feita em oito Estados-membros: Bélgica, França, Alemanha, Itália, Holanda, Polónia, Portugal e o Reino Unido. Foram feitas entrevistas individuais ou de grupo, para melhor perceber “o fenómeno preocupante da exploração laboral grave”.
Quando o trabalhador paga a multa do empregador
Um trabalhador em situação irregular em Portugal contou que os inspetores da ACT ordenaram ao patrão para regularizar a situação dos trabalhadores. O patrão não só não acatou a ordem, como exigiu a cada trabalhador o pagamento de 300 euros para alegadamente contratar um advogado que tratasse dos processos de regularização.
De acordo com o trabalhador, o patrão não contratou nenhum advogado e guardou o dinheiro para pagar possíveis multas.
Noutro caso, os inspetores da ACT detetaram dois trabalhadores em situação irregular e ordenaram ao empregador que lhes fizesse um contrato para eles poderem pedir uma autorização de residência, ao que ele acedeu.
“Uma semana depois, ele obrigou-os a assinar o fim do contrato, como se eles se tivessem despedido, mas eles continuaram lá a trabalhar só que sem qualquer contrato”, contou uma trabalhadora de nacionalidade ucraniana de uma empresa de limpezas.
Trabalhadores deficientes facilitam falcatruas
Um trabalhador agrícola polaco na Alemanha conta que havia dois formulários na empresa: “num trabalhávamos apenas oito horas e no outro trabalhávamos 14. Caso uma inspeção aparecesse, tínhamos de mostrar o primeiro formulário”, relatou às equipas da FRA.
No documento, com cerca de 30 páginas, a FRA aponta ainda que as inspeções realizadas aos locais de trabalho que integram trabalhadores migrantes “são muitas vezes deficientes ou ineficazes”, situação que dá espaço de manobra “a empregadores sem escrúpulos” para explorar os trabalhadores.
“Os trabalhadores de hoje não deveriam pagar um preço para usufruir do seu direito ao trabalho. A exploração laboral grave deve ser erradicada”, declara o diretor da agência, o irlandês Michael O’Flaherty.
O painel de entrevistados (133 homens e 104 mulheres) foi integrado por trabalhadores migrantes oriundos de países fora da UE, mas também por cidadãos do espaço europeu.
Efeitos positivos
Apesar dos maus exemplos, a FRA também encontrou testemunhos de satisfação em relação à forma de atuação dos inspetores ou das forças policiais portugueses, apontando que se preocuparam em ouvir os trabalhadores pessoalmente – longe dos empregadores – explicaram-lhes os seus direitos e encaminharam-nos para outros serviços, consoante as necessidades.
Dezasseis trabalhadores – entre 63 pessoas que testemunharam ou experienciaram uma inspeção – apontaram que houve consequências positivas das inspeções: dez entrevistados (oito na Holanda e dois em Portugal) foram retirados da situação de exploração e seis foram identificados como vítimas de tráfico de serem humanos (um na Bélgica, três na Holanda e dois na Polónia.
No caso de Portugal, os entrevistados sugeriram mais medidas sancionatórias e punitivas para os empregadores quando são identificadas relevantes violações de leis.
Agência defende inspeções sem aviso
O reforço de inspeções laborais eficazes, sem aviso prévio e com equipas especializadas na área da exploração laboral é vital para garantir a proteção dos muitos milhares de trabalhadores migrantes presentes na União Europeia, segundo um relatório divulgado esta quarta-feira.
O relatório avança também, e sempre tendo por base os testemunhos recolhidos, que mais de metade dos entrevistados nunca tinha testemunhado ou ouvido falar de inspeções laborais.
Vários mencionaram os casos de empregadores que recebiam avisos prévios sobre as inspeções, permitindo-lhes encobrir as más práticas laborais.
Segundo a FRA, tal situação apenas serve para “minar a confiança dos trabalhadores em relação às inspeções”.
“A inspeções laborais desempenham um papel vital na deteção de abusos. Como tal, os Estados-membros [da EU] precisam de reforçar as inspeções para apanhar empregadores exploradores e melhor proteger os trabalhadores”, reforça Michael O’Flaherty, que assumiu a direção da FRA em dezembro de 2015.
A agência lança, por isso, no documento divulgado hoje um conjunto de sugestões para que a monitorização das condições laborais dos migrantes seja mais eficaz e assertiva.
A par de um imprescindível reforço das inspeções laborais no terreno, a FRA acredita ser crucial a realização de inspeções sem aviso prévio, nomeadamente em setores de atividade em que os abusos são mais comuns, e exorta os Estados-membros da UE a punirem os empregadores que tentem enganar os inspetores.
A organização insta igualmente os parceiros comunitários a definir de forma clara na lei o que constitui condições de exploração laboral e a colocarem nos objetivos centrais das inspeções “a deteção de formas criminosas de exploração de mão-de-obra, em consonância com as obrigações ao abrigo da legislação da UE e internacional”.
A propósito dos setores mais problemáticos, a organização aconselha os 28 Estados-membros da UE a darem “especial atenção” às áreas da construção e da alimentação, mas também recorda a necessidade “de encontrar maneiras de inspecionar o trabalho doméstico”, maioritariamente realizado por mulheres migrantes.
A postura e a formação dos inspetores também é um dos pontos focados pela FRA.
“Os inspetores devem criar um ambiente seguro para os trabalhadores, para que estes possam dar livremente as suas opiniões sem medo de retaliações. Isso também pode implicar encontrar maneiras de superar as barreiras linguísticas ao falar com trabalhadores”, indica a organização.
Ainda neste campo, a FRA frisa: “Os inspetores também devem garantir que as inspeções são focadas nos direitos e nas condições de trabalho dos trabalhadores, em vez do estatuto migratório dos trabalhadores”.
Para tornar as inspeções mais eficazes, a FRA aconselha ainda os 28 da UE a apostar na formação e na especialização de inspetores para a área da exploração laboral, elementos esses que poderão integrar unidades especializadas dentro das equipas de inspeção laboral e participar em operações conjuntas com as forças policiais.
A sensibilização de outras organizações, como hospitais ou sindicatos, para a problemática da exploração laboral também consta na lista de sugestões da FRA. A organização acredita que estas entidades podem ajudar no relato de casos suspeitos de exploração.
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