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António Costa, o ainda primeiro-ministro, aprovou uma lei que entrou em vigor a 20 de junho passado para acelerar a retoma da economia através de fundos europeus e, em especial, de verbas a fundo perdido do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Problema: segundo o Tribunal de Contas (TdC), esse regime especial criado para o efeito foi praticamente ignorado por empresas e entidades públicas.
Ou seja: se é verdade que a execução dos fundos europeus está a ir bem, ela está a ser muito feita fora destes canais e, em muitos casos, o Tribunal de Contas não é tido, nem achado pois não tem sido informado, o que contraria a lei.
O Tribunal queixa-se de várias violações das regras. Diz que não foi informado da existência de muitos contratos, que a maioria dos projetos avançaram fora do regime especial, muitos com “grave deficiência de fundamentação” e, em alguns casos, desconhecia-se até se podiam ser elegíveis para os fundos europeus.
Pode-se dizer, inclusive, pela descrição do coletivo de juízes presidido por José Tavares, que o quadro é algo caótico, mostra o estudo de Acompanhamento da Contratação Pública abrangida pelas Medidas Especiais previstas na Lei n.º 30/2021, divulgado no início desta terça-feira.
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Esse diploma alterou o Código dos Contratos Públicos e instituiu “um regime excecional com o objetivo de simplificar e agilizar procedimentos pré-contratuais com vista a dinamizar o relançamento da economia”, agilizando contratos mais pequenos, seja qual for o seu formato, por exemplo.
“Os contratos celebrados na sequência de quaisquer procedimentos adotados ao abrigo das medidas especiais de contratação pública previstas na referida lei que sejam de valor inferior a 750.000 euros devem ser eletronicamente remetidos ao Tribunal de Contas para efeitos de fiscalização”, uma forma de acelerar a sua aprovação pelo TdC.
No entanto, esta via foi quase ignorada, lamenta o auditor das contas públicas.
Entre 20 de junho e 20 de novembro de 2021, o Tribunal de Contas recebeu informação sobre a assinatura de apenas “96 contratos ao abrigo de medidas especiais de contratação pública”, num valor global que ronda os 5,6 milhões de euros.
Ora, estes 96 contratos “representam apenas 0,43% dos contratos públicos de valor inferior a 750.000 registados no portal dos contratos públicos no mesmo período, o que indicia um grau de aplicação deste regime muito pouco significativo”.
Mas houve contratos a serem feitos fora deste canal, claro. Nos cinco meses em análise, “foram registados no referido portal 237 contratos classificados como medidas especiais de contratação pública, dos quais 203 não terão sido comunicados ao Tribunal”.
Portanto, isto “aponta para um grau de aplicação das medidas especiais de 1,33% e para um grau de incumprimento do dever de comunicação dos contratos ao TdC de 67,89%”, isto é, o TdC não foi informado sobre dois terços dos contratos assinados.
As entidades mais ativas na contratação têm sido os municípios, observa o Tribunal. Os contratos em causa (cerca de 114) “foram em 51% dos casos outorgados por entidades da administração local, embora o maior montante contratado (34,6%) se situe no setor empresarial do Estado”.
Nos ajustes diretos, os maiores contratos foram lançados e fechados pelos municípios de Viseu, Tarouca e Barcelos.
Na modalidade de consulta prévia simplificada, os maiores negócios foram assinados por Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, Santa Casa da Misericórdia e Hospital de São João da Vila da Lousã e Centro Social de Ermesinde.
A Câmara de Alcoutim é responsável pelo maior concurso público simplificado.
Ajustes diretos dominam
O TdC repara que “no universo de contratos comunicados”, ou seja, daqueles que teve conhecimento, “todos os procedimentos se situaram dentro dos limiares definidos para as medidas especiais de contratação pública”.
Mas “é clara a predominância do ajuste direto simplificado e da consulta prévia simplificada, que abrangem 95,8% dos casos e 89,4% do montante”.
No entanto, “por via da aplicação das medidas especiais, 20,8% dos contratos, representando 72,8% do montante, deixaram de ser submetidos a um procedimento aberto à concorrência”.
“Em 17 dos procedimentos, apesar de terem sido convidadas pelo menos 5 entidades a apresentar proposta, só uma ou duas o fizeram. Em 33 dos 96 contratos, os intervenientes (adjudicante e adjudicatário) estão situados na mesma localidade.”
Pouco constitucional
O Tribunal alerta ainda que “a dispensa generalizada da obrigação de adotar procedimentos concursais se afasta dos princípios constitucionais e administrativos aplicáveis na ordem jurídica portuguesa e do entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia de que os princípios dos tratados europeus também se aplicam a contratos abaixo dos limiares para aplicação das diretivas europeias de contratação pública, não estando também em linha com as boas práticas”.
Assim, os riscos e problemas detetados são muitos. “Grave deficiência de fundamentação” dos contratos; “aplicação de medidas especiais de contratação pública com fundamento no financiamento europeu dos contratos sem que esse financiamento esteja assegurado”, “incumprimento das regras de financiamento da despesa”, “consulta prévia a empresas que não respondem a convites”; “execução dos contratos sem que os mesmos sejam comunicados ao Tribunal de Contas ou antes do respetivo envio”.
Se considerarmos apenas os contratos de maior duração (superior a um ano), o Tribunal ficou “surpreendido” por encontrar “20 contratos de longa duração sem qualquer garantia [caução]”, representando um valor global de quase 1,5 milhões de euros (26,3% do total).
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