Partilhareste artigo
Dando voz a muitas microempresas que enfrentam atualmente a pesada fatura da crise provocada pela pandemia de covid, Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP – associação que representa os setores da hotelaria, restauração e similares -, diz que o IVAucher, apresentado na proposta de Orçamento do Estado para 2021, não vai criar um verdadeiro estímulo ao consumo. Defende antes medidas como a redução da carga fiscal para ajudar as empresas a ultrapassar este momento dramático.
Como é que a AHRESP vê esta proposta de Orçamento do Estado para 2021?
Com grande preocupação. Consideramos que a proposta de Orçamento não está virada para as empresas, tal como desejaríamos. Não conseguimos detetar nenhuma medida específica de apoio a estas empresas. Temos apenas algumas medidas que tentam criar um bocadinho de ruído.
Está a falar do IVAucher?
Estou a falar, por exemplo, do IVAucher. Do nosso ponto de vista só tem causado um certo ruído, porque como medida eficaz temos muitas preocupações. Se o objetivo era a dinamização do consumo, nós, AHRESP, temos proposto várias medidas, algumas das quais foram implementadas em outros países, como o Reino Unido, e foram eficazes. Devemos ir buscar os bons exemplos quando precisamos deles. Do nosso ponto de vista, o Orçamento fica muito aquém daquilo que devia. As empresas dos setores da restauração, bebidas e alojamento – todos setores mais impactados por esta crise -, que precisavam de ser segurados e impulsionados com este Orçamento, não o são, não conseguimos detetar medidas nesse sentido. Estamos muito apreensivos. Estamos a pedir ao governo e grupos parlamentares audiências para dar mais uma vez as nossas sugestões e medidas que consideramos que devem ainda ser implementadas.
Que medidas?
Desde logo, a que tem sido mais mediática: a descida do IVA no serviço de alimentação e bebidas.
Vídeo: Que medidas gostariam que estivessem no OE?
Subscrever newsletter
Descida para a taxa reduzida?
Descida para a taxa reduzida, sim, estamos a falar de 6% no continente. Isto não é uma medida inovadora, está em vigor em vários países da Europa – incluindo Alemanha e Áustria – e outros estão a avaliar, como Espanha. Nós temos duas taxas: a intermédia para alguns serviços e a máxima para as bebidas. Todos estes países têm agido assim para suster postos de trabalho e aguentar empresas.
Há negociações nesse sentido com o governo?
Andamos a pôr isto em cima da mesa há algum tempo, mas agora encomendámos um estudo a uma consultora internacional para que nos desse conta de qual o impacto desta medida, o que podia trazer. Esse estudo foi recentemente apresentado e tivemos oportunidade de enviá-lo ao primeiro-ministro e estamos a enviar aos grupos parlamentares.
A maior parte destes países que já aderiram à aplicação da taxa reduzida fizeram-no em julho e os efeitos têm sido monitorizados. O que a AHRESP diz é aquilo que está acontecer por esta Europa fora; os países que tomaram esta decisão tiveram maior facilidade em reter trabalhadores, em conseguir tesouraria, que é tão urgente para estas empresas.
Não temos medidas que deem tesouraria às empresas. As que foram criadas para o setor foram basicamente endividamento. Depois tivemos o lay-off simplificado, que entretanto teve um sucedâneo. Foi depois reforçado, é um facto, mas é uma medida complexa, burocrática e não é por aí que as nossas microempresas vão ser apoiadas. O que é que temos mais? Nada! E esta era uma medida que permitia alguma tesouraria.
Já tiveram algum feedback? Ainda pode entrar alguma coisa nesse sentido neste orçamento?
Trabalhamos sempre com muita determinação. É isso que vamos continuar a fazer. Estávamos à espera da apresentação do estudo porque era importante. Temos até quase ao final de novembro a discussão e não vamos desistir porque também não percebemos qual é o motivo de uma medida destas não ser acautelada, por isso vamos continuar a pugnar por ela.
O estudo diz que com esta medida estamos, no mínimo, a reter 46 mil postos de trabalho; e a salvar da sombra da insolvência no mínimo 10 mil empresas. O investimento que o Estado faz – nas contas feitas entre o que não gasta em subsídios de desemprego, o que recebe de TSU e impostos -, no fundo, estamos a falar de cerca de 90 milhões de euros, o que não é nada face àquilo que conseguimos garantir que é a economia, os postos de trabalho.
O IVAucher é uma medida que tem como objetivo estimular o consumo. Acredita que vai ser facilmente operacionalizado?
Ainda não conhecemos os contornos exatos de como a medida se vai desenvolver. O que estamos a fazer é a criar algum dinamismo e incentivo para as famílias que já têm por hábito fazer esse gasto. Estamos a permitir que haja consumo noutros setores. A verdade é que, com o IVAucher, o consumo pode ser realizado em outros setores, designadamente a cultura – que está também numa situação difícil, não é isso que está em causa, mas a verdade é que estamos a falar dos setores que a AHRESP representa e portanto, neste caso, podemos estar a falar de nada. E não é isso que a AHRESP tem vindo a defender.
Achamos que esta medida – e não somos só nós que o dizemos; ainda ouvi recentemente um fiscalista que dizia exatamente isto – é um bocadinho para criar algum ruído e pouco mais. Na verdade não vai ser eficaz, não vai ser com essa medida que vamos criar a dinâmica de incentivo ao consumo. A AHRESP foi à procura de medidas que já estavam a ser implementadas em outros países e encontrou algumas. Uma das que mais temos colocado em cima da mesa foi o que o Reino Unido fez, dando um desconto direto, ágil, a todos os consumidores, que é suportado pelo governo. Isto sim, para nós, é uma medida de dinamização do consumo. E foi isso que tantas vezes solicitámos e nunca tivemos resposta. A resposta que tivemos foi a criação do IVAucher…
Depois há algumas medidas do Turismo de Portugal mas na lógica, mais uma vez, de alguns segmentos, porque estamos a falar de experiências gastronómicas
Vídeo: Insolvências. Conseguem já ter números do que aconteceu até aqui?
Têm números de insolvências?
Temos vindo a monitorizar o setor desde o início da pandemia e o que temos vindo a verificar é que os dados se têm vindo a agravar. Tivemos em agosto uma almofada em alguns territórios, por força do turismo interno, mas nos grandes centros urbanos foi um desastre. Este último inquérito que foi realizado entre 30 de setembro e 4 de outubro comprova aquilo que temos vindo a dizer: 63% das empresas tiveram, em setembro, quebras homólogas superiores a 40%. Se olharmos para os meses de verão, julho a setembro, 31% das empresas tiveram quebras homólogas entre os 50% e os 75% e 29% tiveram quebras superiores a 75%.
Como é que o setor vai chegar a 2021?
Deixe-me dar uma nota: no alojamento turístico os números também são preocupantes. E há aqui um dado novo: se até setembro tínhamos a maioria das empresas a relatar que estavam a aguentar postos de trabalho, com muito sacrifício e com a ajuda do lay-off simplificado, neste último mês já temos cerca de 40% do setor a dizer que já despediu. Se olharmos para o alojamento turístico, 25% já fizeram despedimentos. Isto preocupa-nos e confirma o que temos vindo a dizer: as empresas foram fazendo um esforço enorme para conseguir aguentar empregos, que são a mais-valia do setor, e fazem tudo para o conseguir, mas estamos a chegar a um ponto em que 93% das empresas já nos disseram que as medidas são insuficientes.
Nesse relatório, os números das empresas que não tinham conseguido pagar salários é alto…
Estão numa encruzilhada porque apoios novos e medidas novas nem no OE as encontrámos. Corremos o risco de não aguentar até ao final do ano. Especialmente, as microempresas. Algumas conseguiram recorrer à banca e ao financiamento e estão a aguentar-se, mas muitas nem isso. E as que conseguiram vão ter de pagar esse dinheiro. O que estamos a verificar é que a retoma está a ser demasiado lenta. Seremos talvez dos últimos setores a recuperar e estamos a ficar sem luz ao fundo do túnel. Da parte da AHRESP, temos um conjunto de medidas que queremos que possam ainda ser implementadas com o OE. Não é só a questão do IVA; é a isenção das contribuições sociais, a isenção e redução de alguns impostos, a questão das rendas. Há uma série de propostas que precisamos urgentemente que o governo veja e comece a implementar, sob pena de não conseguirmos aguentar este setor. Se o setor não aguenta, começam os despedimentos e estes trabalhadores têm de ser apoiados ao nível da Segurança Social. Se não queremos que isto aconteça, é preciso apoiar as empresas antes de termos de despedir toda esta capacidade, que vai demorar anos a recuperar.
A diversão noturna está praticamente fechada. O que é que vai acontecer?
Não sei. E são muitos empregos…
Mas esta é também uma das componentes do turismo…
É um produto turístico fundamental para o país. Sempre tivemos um produto de animação turística robusta que nos trazia muita gente. É um complemento muito importante e que está a ser posto em causa porque as empresas estão com faturação zero há quase nove meses – e com encargos. Não vai ser fácil aguentarem. O governo criou um mecanismo para que estes estabelecimentos pudessem abrir num outro formato, mas nem todos conseguiram. Foi residual.
A banca tem sido solidária com estes setores?
Desde a primeira hora, uma das medidas apresentadas pelo governo foi criar endividamento.
As moratórias pressupõem um adiamento dos pagamentos…
E são bem-vindas, mas não podemos esquecer que vamos ter de pagar. Quando surgiram estas medidas, a AHRESP apressou-se a fazer uma plataforma de monitorização. Nela, verificamos que os bancos fizeram o que entenderam independentemente de haver protocolos e regras acordadas com o governo. Houve bancos que exigiram garantias bancárias e não podiam.
Isso continua a verificar-se?
Não, porque quem podia já recorreu e está com créditos. Os que viram os pedidos negados não tornam a bater à porta da banca. No momento em que a medida foi criada isso era um facto generalizado para as microempresas, as mais pequenas. Nas mais estruturadas isto não acontecia tanto.
Os números da pandemia têm sido mais altos nos últimos dias. Tem-se falado num possível recolher obrigatório. O setor terá mais dificuldades se for assim?
Sim, qualquer medida adicional às que já temos é mais um prego no caixão; qualquer agravamento é uma dificuldade tremenda. Há países que estão a tomar essas medidas, mas é preciso analisar o que está a ser feito para os setores de atividade que estão a ser afetados. Nós vamos tendo os agravamentos mas sem apoios e esta equação não vai funcionar.
De zero a 10 que classificação dá à atuação do governo desde o início da pandemia?
Vou ter de dividir. No início da pandemia fomos todos apanhados de surpresa – o governo também e esteve numa situação difícil. Foi sabendo ouvir e dando resposta a algumas das preocupações que fomos colocando em cima da mesa. Mas decorridos quase oito meses, sabemos a gravidade da situação, sabemos que não vamos sair dela tão depressa, e sabemos que não estamos a ser apoiados. Portanto, agora, a prestação é negativa.
Deixe um comentário