Covilhã e Guarda voltaram a estar ligadas por ferrovia uma dúzia de anos após o encerramento para obras. Apesar do investimento de 77 milhões e dos fundos europeus, o comboio não passa dos 100 km/h e falta frequência para convencer as pessoas a trocar o carro por uma viagem sobre carris.
“Vamos passar o fim de semana a um hotel que tinha um programa em que se viermos de comboio eles vão buscar-nos à estação. Foi por isso que optámos pelo comboio. Achámos curioso. Se assim não fosse, provavelmente teríamos feito a viagem de carro. Nunca nos lembraríamos de usar o comboio.”
Eduardo e Maria do Carmo entraram com os dois filhos no Intercidades para a Guarda em Santa Apolónia. Eram 8h15 quando a locomotiva do Intercidades 541 soltou um breve apito e a composição se pôs em movimento. Nove minutos depois parou sob as árvores de Calatrava na estação do Oriente onde só entrou meia dúzia de passageiros. Num sábado de manhã não há muita gente a viajar.
Vila Franca de Xira, Santarém, Entroncamento. Este comboio tem poucas paragens e o que há de relevante neste troço da linha do Norte é que se atingem velocidades superiores a 140 km/h (e até mesmo 200 km/h numa pequena secção) o que já não acontecerá depois do Entroncamento quando invertermos para a linha do Leste. Daqui a Abrantes e depois, pela linha da Beira Baixa acima, a via é única e as velocidades são mais comedidas, raramente ultrapassando os 100 km/h.
Em comum desde que saímos de Lisboa é que temos o Tejo como vizinho. E numa manhã soalheira como a de hoje é um prazer recrear a vista através da janela do comboio. De uma lado a Lezíria, o rio prateado e os mouchões do Tejo, do outro lado do comboio, as indústrias e complexos logísticos da Azambuja e Castanheira do Ribatejo.
Mas agora a paisagem é rural: passamos Vila Nova da Barquinha, avistamos o castelo de Almourol, atravessamos o rio em Constância e novamente em Abrantes, ou melhor, em Rossio ao Sul do Tejo, pois assim se chama a localidade da estação ferroviária que serve a cidade que se avista lá no alto.
Para a família de Eduardo e Maria do Carmo, o fim de semana não poderia começar da melhor forma: “O conforto, a paisagem e o facto de estarmos os quatro a falar são fatores benéficos”. Os quatro viajam juntos em redor de uma mesa, coisa que só o comboio consegue proporcionar. Os filhos estão fascinados com o Tejo.
É nesse registo que agora circulamos Beira Baixa acima: o rio, sempre o rio, rodeado de verde, ora uns metros lá em baixo, sulcado de rochas e bancos de areias, ora um espelho de água compacto que quase beija a via férrea porque entretanto passamos velozmente por uma barragem que reteve as suas águas. Foi assim em Belver e vai ser novamente em Fratel até que, subindo sempre, galgamos as Portas de Ródão e deixamos para trás – com pena – o magnífico vale que o rio desenhou.
É altura, então, de nos voltarmos para dentro. O Intercidades 541 é composto por uma máquina elétrica Siemens, que reboca duas carruagens de 2.ª classe e duas de 1.ª classe. Se a locomotiva é alemã, as carruagens são portuguesas, fabricadas na Sorefame nos anos 60 e 70 do século passado, mas alvo de uma profunda reformulação nos anos 80 e 90 que as deixaram como novas e com um nível de conforto que não deixa nada a desejar, e iguala mesmo, os padrões de comodidade dos comboios europeus.
A caminho da Guarda, o comboio também assenta bem ao casal que viaja ao lado de Eduardo e Maria do Carmo. “Já viajei várias vezes para a Guarda de autocarro, mas acho o comboio mais confortável e com melhor vista”, destaca a russa Alisa Polav. O parceiro, o francês Florent Quilleny, com sotaque de português do Brasil, destaca a limpeza das composições.
Mais à frente, há um bar de tons brancos e verdes onde é possível tomar um café sentado em torno de uma mesa, ou em bancos altos num balcão corrido em frente às janelas para se apreciar a paisagem.
É um espaço social onde famílias ou amigos facilmente se esquecem do tempo a conversar. Além das bebidas habituais, café (80 cêntimos), cerveja (1,20 euros), sumo (1,30 euros), pode pedir-se meia garrafa de Porca de Murça por 1,50 euros. As sandes custam dois euros e se a fome for muita, em desespero de causa pode tentar-se uma lasanha ou um arroz negro pré-congelados que custam 5 euros depois de passarem pelo micro-ondas. A variedade “não é brilhante”, de acordo com a família.
E eis que chegamos a Castelo Branco. À tabela. São 11h07. Segue-se o Fundão e a Covilhã, a cidade que ainda há um ano era a estação terminal deste comboio porque a linha terminava ali.
Linha sem solavancos
Neste “novo” troço é notória a forma suave como o comboio desliza pela linha. Salta à vista que a via férrea está um brinquinho, pois o passageiro não nota solavancos nem ruído nesta linha de primeiro mundo. Afinal, sempre foram gastos, perdão, investidos, perto de 77 milhões de euros na modernização deste troço de 46 quilómetros – dez deles já tinham sido intervencionados cerca de uma década antes.
Só foi pena que este projeto, um dos 20 empreendimentos do Ferrovia 2020, não tivesse sido um pouco mais respeitador do património ferroviário e da memória que o caminho-de-ferro deixou na paisagem. Foram demolidos edifícios, outros ficaram em ruínas e as estações sofreram intervenções minimalistas que as preservaram, mas não as valorizaram.
Basta ver a insensibilidade com que colocaram as inestéticas (embora úteis) torres de telecomunicações encostadas às suas paredes, ou, no caso de Benespera, os azulejos que foram retirados e não voltaram a ser colocados.
Apesar das contrariedades, a reabertura do troço Covilhã-Guarda já ajudou passageiros como David Canaveira, a caminho do Sabugal para as férias de Natal. “Normalmente, vou de autocarro. Não pude vir ontem à tarde e tenho alguém à espera na estação.” Habituado ao comboio suburbano da região de Lisboa, o jovem destaca a “muito bonita paisagem”.
Apesar das inegáveis vantagens sobre carris, David prefere o autocarro: “Não tenho de chatear ninguém e é mais barato”. E até mais rápido, acrescentamos. O comboio Lisboa-Guarda demora pelo menos 4 horas e 27 minutos pela linha da Beira Baixa. O bilhete em segunda classe custa 21,20 euros. Se escolher o autocarro, a viagem demora cerca de quatro horas e paga entre 12 e 19 euros pela Rede Expressos.
Num país onde cada cêntimo conta, o preço determina que um passageiro troque o conforto e a vista do comboio pelo lugar barato do autocarro. A viagem sobre carris apenas é mais barata quando o bilhete é comprado com pelo menos cinco dias de antecedência no site da CP.
Comboios mal cabem
Mesmo com a suavidade no troço reaberto, o comboio não anda muito mais depressa do que há cem anos, porque mantiveram-se muitas das curvas do traçado desenhado ainda no século XIX. A velocidade máxima permitida neste percurso é de 100 km/h num total de cinco dos 46 quilómetros do troço Covilhã-Guarda. Em média, o comboio circula a pouco mais de 83 km/h.
O investimento da IP também serviu para aumentar a segurança na via, com a supressão de passagens de nível. No entanto, o apeadeiro da Benespera convida a que um carro não consiga atravessar a linha em risco de colisão, pois a curva apertada foi protegida com barreiras de betão.
Situações como esta passam ao lado do mais novo passageiro do Intercidades.
Alexandre Bidarra desenha com um lápis um comboio num cartão quadrado desde que entrou na Covilhã. Viaja com a mãe, que vai a Fornos de Algodres almoçar com os sogros e que os esperam na Guarda.
“O comboio faz parte da minha infância e uso-o mesmo que demore mais algum tempo. Sou da zona Norte e fiz muitas vezes a viagem entre Porto e Régua”, recorda Fernanda Félix, que já passou o entusiasmo ferroviário para o filho.
A reabertura do Covilhã-Guarda também mostra como a empresa que gere as linhas (IP) vive de costas voltadas para a que põe os comboios nos carris (CP). Nos apeadeiros de Maçainhas, Benespera e Sabugal, a plataforma tem apenas 80 metros de comprimento. Em termos práticos, apenas tem espaço para uma UTE (automotora elétrica com três carruagens) ou então para as três carruagens do Intercidades (a locomotiva já fica de fora).
Ora, no dia em que viajámos até à Guarda, o comboio seguia com quatro carruagens e uma locomotiva. Ou seja, todo o comboio não caberia em pelo menos três paragens. O revisor comunicou aos passageiros para não saírem na carruagem da cauda pois, se abrissem as portas, teriam de descer para a linha ou até arriscar-se a cair do comboio.
Além disso, nestes apeadeiros, a IP fez questão de colocar grades nas extremidades da plataforma, o que dificulta a entrada de algum passageiro mais incauto ou distraído que tenha saído fora do apeadeiro.
Benespera persistente
O troço foi reaberto no início de maio. No mês anterior, quando os horários foram conhecidos, Benespera e Sabugal estavam fora da lista de paragens. Reclamou a gente que ansiava o regresso do comboio ao Vale da Teixeira e que era posta à margem de um laivo de futuro.
Agora que estava tão perto é que a freguesia ia perder este comboio? Ainda a linha não tinha sido reaberta aos passageiros e já a aldeia fazia romagens à estação para que não fossem recordados como apenas mais uma estação desativada, perdida num qualquer mapa de rede. A 18 de abril, a aldeia foi ao apeadeiro para assistir à estreia de um comboio de mercadorias, em dia da Festa de Santo Antão.
A CP acabou por se mostrar sensível às pretensões da população e as notícias foram melhores ainda do que se esperava: diariamente, param ali uma dúzia de comboios de passageiros (seis em cada sentido), sejam regionais ou intercidades.
Na prática são todos os comboios que utilizam aquele troço e alguns permitem ligação direta com a capital por um preço que pode começar nos 11 euros – aqui, sim, imbatível face a qualquer outro meio de transporte.
Desde o primeiro dia que a aldeia quis abraçar o comboio como nenhuma outra. Em 2 de maio, dia da inauguração, que teve direito à presença do ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, a Benespera quis mostrar que abraçava o comboio como nenhuma outra e uma centena de passageiros ali entrou rumo à Guarda.
O responsável por tudo isto foi o jovem Filipe Santos. Ao Dinheiro Vivo confessa que disse sempre que iria andar de comboio no primeiro dia em que ele ali passasse. Não contava era que, quando perguntou à aldeia se queria juntar-se na viagem, mais de uma centena de pessoas tivesse dito que sim e apanhado o comboio naquele dia.
O momento ficou guardado em vídeo e tornou-se viral. Antero Pires, que gere nas redes sociais uma página dedicada à linha da Beira Baixa e que conhece, como poucos, cada quilómetro daquela linha, fala numa “paixão genuína”. Um amor à ferrovia que o levou a sair às 4h30 da madrugada desse 2 de Maio de 2021 – um domingo – da zona do Sabugal para apanhar às 6h da manhã, na Covilhã, o primeiro comboio com serviço comercial.
Doze anos antes, em março de 2009, Antero não conteve as lágrimas quando chegou à ponte da Carvalha, nos arrabaldes da Benespera, para tirar uma foto àquela que seria uma das últimas automotoras Allan a fazer serviço comercial neste troço recém-reaberto.
O entusiasta dos comboios e da linha da Beira Baixa chegou a pensar que aquele regresso nunca mais aconteceria e que a linha se poderia transformar num mero ramal amputado na estação da Covilhã. O troço esteve encerrado largos anos à espera de que os vários governos decidissem o seu futuro.
Agora, juntamente com Samuel Inácio, retratam na internet o dia-a-dia agitado daquela linha, que teve como uma das últimas “aquisições” a circulação do comboio porta-automóveis da Takargo entre a Autoeuropa (em Palmela) e Martorell, em Barcelona. “Quem me tira a LBB tira-me a vida”, diz Antero Pires.
Filipe Santos continuou a reunir a população da Benespera em torno do comboio. Conseguiu, no dia 23 de outubro, esgotar o Intercidades – e o seu bar! – numa viagem entre a aldeia e a Covilhã.
Nesse dia concretizou também um sonho de vida: pouco antes da paragem no apeadeiro da aldeia, e com a cumplicidade do revisor, foi ele que anunciou, no sistema sonoro do comboio, a paragem do Intercidades na sua querida Benespera.
Para gáudio dos seus vizinhos. Já neste Natal decoraram com enfeites da quadra toda a aldeia, e o apeadeiro não ficou esquecido, numa iniciativa única a nível nacional. Entre ferroviários já há quem lhe chame a “capital ferroviária” da Beira Baixa.
Se houver um vencedor das obras do Ferrovia 2020 foram eles: os 297 habitantes da Benespera que souberam agarrar o comboio como nenhum outro lugar. Não sabem o que lhes reserva o futuro mas, até lá, querem continuar a justificar cada paragem, para que a aldeia não fique só a ver os comboios passar.
Oferta a conta-gotas
Outra coisa também é certa: em 2022, a linha da Beira Baixa será a única forma de passageiros e mercadorias viajarem entre Lisboa e Vilar Formoso, pois a linha da Beira Alta vai fechar para obras durante mais de meio ano.
Resta saber se a CP também irá aproveitar para reforçar a oferta entre Covilhã e Guarda. Entre as 8h45 e as 12h00 e entre as 19h00 e as 23h00 não passa um único comboio naquele troço.
A Câmara da Covilhã já fez propostas para rentabilizar o investimento. Quer comboios de 30 em 30 minutos entre Guarda e Castelo Branco e propôs que alguns comboios da Beira Baixa seguissem diretamente para Vilar Formoso (e Salamanca) e outros que prosseguissem viagem pela Beira Alta até ao Porto.
* Carlos Cipriano, Diogo Ferreira Nunes e Ruben Martins são fundadores do projeto Sobre Carris
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