CEO do gigante da internet Cloudflare “adora” Portugal e os portugueses, quer contratar mil pessoas por cá em cinco anos e tornar o país na Silicon Valley da Europa. Num mês viu ainda a empresa ganhar 10 mil milhões de dólares em valor de mercado graças ao novo centro de Lisboa, mas a burocracia “sem critério” está a estragar tudo. Entrevista exclusiva ao Dinheiro Vivo após a polémica no Twitter que envolveu o Governo.
Pediu desculpa pelo excesso de linguagem em relação ao Governo português no Twitter, admitiu estar “muito frustrado com a burocracia sem critério” que tem prejudicado a sua empresa, mas que “adora Portugal e os portugueses” e sempre insistiu para que fosse Lisboa a ganhar a corrida em 2019 para ser o centro tecnológico europeu da Cloudflare. Deixou ainda vários avisos que podem servir para “tornar Portugal melhor para os portugueses e para os investidores e concretizar o potencial incrível que o país tem para se tornar na Silicon Valley da Europa”.
Matthew Prince é o CEO da gigante Cloudflare, uma empresa que fornece tecnologia que ‘alimenta’ e torna mais de 10% dos sites mundiais (inclusive os portugueses) “mais seguros e rápidos”. Em entrevista exclusiva ao Dinheiro Vivo, esta sexta-feira, explica que só depois do tweet “emocional” que escreveu na quarta-feira à noite teve a abertura do Governo “para ajudar a resolver os problemas burocráticos que se têm amontoado” e que “são um tiro no pé do próprio país”. No Twitter, o responsável dizia que “estão a contratar muitos portugueses e a trazer os melhores e mais brilhantes portugueses diáspora de volta ao país e a importar os melhores engenheiros”: “mas somos bloqueados a cada tentativa”.
Em entrevista ao DV, Prince revelou também que foi o seu amigo Paddy Cosgrave (o CEO da Web Summit) a dar o pontapé de saída para a Cloudflare considerar Lisboa para o seu centro tecnológico na Europa – havia várias outras pessoas na equipa que preferiam Berlim, Paris ou Amesterdão – e que os planos para Portugal passam por tornar o atual centro no país no segundo maior da empresa, com mil colaboradores até 2025.
Neste momento já têm 100 pessoas (incluindo o experiente Celso Martinho – conhecido como o criador do Sapo) no centro criado no verão de 2019 em Lisboa (mudaram-se já em abril para novas instalações no Marquês de Pombal) e vão contratar mais de 80 em 2021. Isto além da empresa querer “ajudar a formar muitos portugueses em áreas fulcrais como inteligência artificial” e “contribuir para um ecossistema tecnológico aproveitando o potencial incrível do país de ter um papel crucial como centro tecnológico da Europa”.
A americana Cloudflare, baseada na Califórnia, tem um valor de mercado neste momento de 16 mil milhões de dólares e subiu em bolsa quase 60% em valor no último mês – um aumento de 6 mil milhões de dólares – “em grande parte por causa dos novos produtos Cloudflare One para redes de empresas que foram criados precisamente no nosso centro de Lisboa”.
Burocracia de pormenores, cria problemas maiores
O funcionário que supervisionou esse novo serviço, que ajuda a uma maior segurança nas redes de empresas que lidam com o trabalho remoto, é um americano que se mudou com a mulher no final de 2019 do Texas para Lisboa. “Quando o avô da mulher dele morreu e ela quis voltar para ir ao funeral, o SEF disse-lhe que não podia voltar a entrar no país se o fizesse, sem nunca percebermos os motivos da decisão arbitrária”, explica Matthew Prince, indicando que esse é apenas um dos muitos exemplos que tem prejudicado os colaboradores da empresa, muitos que estão a formar portugueses para o centro de Lisboa.
“Inicialmente, quando entrámos em Portugal a leis pareciam ótimas, os portugueses e o país é incrível e tivemos a indicação do Governo que iria sempre ajudar se houvesse problemas”, indica o CEO deste gigante da internet.
Prince diz que os problemas têm-se avolumado este ano, inclusive antes da pandemia, e envolvem desde dificuldades dos colaboradores norte-americanos ou de outros países de sair e entrar no país “com decisões arbitrárias do SEF que não estão escritas”, passando por assinaturas de documentos dificultadas pela alfândega, a outras coisas mais simples como renovar uma carta de condução que se prolonga por meses” e que têm tornado a operação das 100 pessoas que já trabalham no centro tecnológico de Lisboa “muito difícil”. “Chegamos a enviar pessoas à Madeira para ir buscar documentos, porque lá não há os problemas burocráticos que temos em Lisboa”, admite.
O talento (e o bem estar dos funcionários) é crucial para qualquer empresa tecnológica, ainda mais quando a inovação está no cerne do sucesso da empresa, como é o caso da Cloudflare, que começou em 2009 como uma ideia para combater o spam na internet e tornou-se casa para milhões de sites e apps do mundo.
Daí que, se a burocracia de um país criar problemas diários aos colaboradores e ao funcionamento de uma empresa tecnológica, o investimento previsto pode facilmente ser canalizado para outro país europeu que possa oferecer melhores condições. “É algo que não queremos , porque continuamos muito satisfeitos com tudo aquilo que nos fez mudar para Portugal, mas fomos surpreendidos por esta burocracia”.
Prince explica-nos que as competências dos engenheiros da Cloudflare são raras e o facto de estarem a formar tantos portugueses pode contribuir para o país ganhar dimensão tecnológica. “Existem muitos colaboradores da Cloudflare que criam depois as suas próprias empresas, porque o que aprenderam na empresa lhes abriu o caminho para novas valências e ideias e não admiraria que isso também acontecesse em Portugal”, admite.
Um relatório e uma reação emocional (no Twitter)
Esta semana, o responsável que falou connosco por videoconferência a partir dos escritórios da empresa em São Francisco, recebeu um relatório sobre o centro de Lisboa. Lá havia “muita coisa boa”, mas também “mostrava de forma clara os atrasos e problemas criados pela burocracia”, daí na quarta sentir “necessidade de dizer alguma coisa no Twitter”. “Sei que podia ter feito de outra forma, não quero prejudicar o país nem o Governo, mas foi uma reação emocional”, admite Prince, que criou a Cloudflare .
Dear @antoniocostapm, when your team promises to work with companies in exchange for moving significant jobs to Portugal and shows laws to support those promises; then your bureaucrats refuse to follow those laws and promises – is that ok? I feel lied to. Cc: @paddycosgrave
– Matthew Prince (@eastdakota) November 4, 2020
Certo é que a frustração do início da semana terminou com mais esperança agora no final da semana, já que a reação online o surpreendeu e acabou, de forma inadvertida, por trazer resultados. André de Aragão Azevedo, secretário de Estado para a Transição Digital, pediu no Twitter “maior foco em resolver a situação e menos barulho” e, depois, contactou o CTO da empresa que está a viver e coordenar o centro de Lisboa, o inglês John Graham-Cumming (que entrevistámos em abril).
“Falámos com o Governo e agora houve maior abertura para tentar ajudar a resolver, mas o problema maior não são as leis, nem propriamente o governo, é a estrutura burocrática e administrativa”, diz Prince, acrescentando: “se a minha explosão no Twitter ajudar a melhorar essa situação para a Cloudflare, para as outras empresas que vêem o potencial de Portugal e até para os portugueses, melhor”.
Prince dá sempre a entender que a Cloudflare vai continuar no país, mas que situações como esta “limitam os argumentos até dentro da empresa para investir mais ou menos no futuro”.
Ao Dinheiro Vivo, André de Aragão Azevedo, que cumpriu um ano de Governo em outubro depois de vários anos na Microsoft, esclarece apenas que o Governo “reafirma a importância de ouvir as empresas e, assim, auscultá-las acerca dos obstáculos que identificam”.
Porque é que Portugal “tem tudo para ser a Silicon Valley da Europa”?
Prince termina revelando que se apaixonou pelo país em 2018, quando Paddy Cosgrave o convidou a vir pela primeira vez a Lisboa e está “desejoso de voltar quando a pandemia acalmar” e até “comprar uma casa”.
Explica também que a missão da empresa de “tornar a internet melhor, mais rápida e segura”, que está a ter “um crescimento vertiginoso com os novos produtos” vai “ajudar Portugal a ganhar dimensão tecnológica a nível europeu e mundial”.
Além disso, não poupa nos elogios indicando: “Portugal tem um clima, comida, cultura, boas universidades, um povo recetivo e agradável e muito talento que lhe dá uma combinação perfeita para recriar o que temos aqui em Silicon Valley na Europa”. Daí a maior frustração com a burocracia “sem critério”, “porque há aqui um potencial que não vemos em Amesterdão, por exemplo, e não queremos que seja desperdiçado”.
Sobre a eleição iminente (na sexta-feira à tarde) de Biden como presidente dos EUA, Prince admitiu sentir-se aliviado já que espera que o democrata traga algum equilíbrio ao país e ajude a unir uma nação dividida.
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