Jessica Powell conhece bem por dentro o ambiente vivido nas grandes empresas tecnológicas. Durante vários anos, esteve no departamento de comunicação de empresas como a Badoo e, mais tarde, a Google, onde chegou a liderar esta equipa.
Em outubro, a antiga executiva publicou na plataforma Medium o livro The Big Disruption, que recorre à ficção para expor alguns dos defeitos de Silicon Valley. Arysen é a personagem principal e vive por dentro o ambiente de uma empresa de tecnologia que pretende desenvolver algumas soluções tecnológicas que pouco importam ao público-alvo e que apenas interessam aos seus criadores.
Em entrevista ao Dinheiro Vivo, Jessica Powell explica a abordagem aos problemas na área tecnológica e deixa duras críticas a grandes empresas como o Facebook e a Uber.
Trabalhou vários anos na Google e na Badoo. Este roman está assim tão longe da realidade?
Há uma razão para isto se chamar “uma história totalmente ficcional mas essencialmente verdadeira de Silicon Valley”. Nada do que está escrito aconteceu verdadeiramente mas o tipo de comportamentos que ficam à vista (ambiente sexista e debates estúpidos por e-mail) e o narcisismo (assumir que o que queremos é o que todo o mundo quer) são absolutamente verídicos.
O que quer mudar no mundo das startups com este livro?
Gostaria que as pessoas que trabalham na área da tecnologia se rissem um pouco ao ler o livro. Só que ultimamente espero que também gere um pouco mais de debate e convide à auto-reflexão sobre o mundo que estamos a construir. Daquilo que tenho ouvido, sem dúvida que há muita gente a falar sobre o livro nas empresas.
Sente-se mais próxima de alguma das personagens?
Nem por isso. Mas tentei ver o mundo da perspetiva exterior – como faria sentido se fosse uma Google ou um Facebook. Por isso inventei uma personagem oriunda de um país imaginário e cujo ponto de partida tivesse pouco em comum com os trabalhadores de Silicon Valley.
Na realidade, Silicon Valley está a tentar resolver alguns dos problemas que mostra neste livro ou o contrário? E os problemas de Silicon Valley estendem-se ao mundo das startups fora dos Estados Unidos?
A maneira como o empreendedorismo em Silicon Valley e a forma como as pessoas começam com as grandes questões, sem preconceitos, é admirável e não se deve perder. Mas acho que as pessoas não olham para diante. Por exemplo, criaram uma plataforma para a liberdade de expressão e agora parece que estão surpreendidos quando de repente as pessoas usam-na para espalhar notícias falsas ou opiniões ofensivas.
As empresas talvez estejam agora mais interessadas em falar sobre o assédio sexual do que há cinco anos mas continua a haver muito sexismo no dia a dia, o que torna difícil para uma mulher trabalhar na área da tecnologia.
E que outros problemas são abordados neste livro?
A desigualdade de género continua a ser uma grande preocupação. As empresas talvez estejam agora mais interessadas em falar sobre o assédio sexual do que há cinco anos mas continua a haver muito sexismo no dia a dia, o que torna difícil para uma mulher trabalhar na área da tecnologia. Por exemplo, quando se decide quem é contratado ou promovido, na maior parte das vezes, escolhe-se um homem mesmo quando a mulher é mais qualificada.
De que forma os escândalos do Facebook e da Uber influenciaram a escrita do livro?
Já tinha tudo escrito quando começaram a sair as primeiras notícias. Mas atenção: estes problemas não são novos. Só que os políticos e a imprensa não têm prestado a atenção devida. Nem a Uber inventou o sexismo nem o Facebook a falta de responsabilidade.
Porque devemos ler este livro?
Quem trabalha na área da tecnologia, certamente, seja para rir seja para ficar com a ideia que o mundo que estamos a construir não é assim tão belo do que nos está a ser prometido. Mas também recomendo o livro às pessoas que se interessam por este mundo e o tipo de pensamento que está a conduzir uma das indústrias mais poderosas da atualidade.
Podemos esperar um novo livro sobre as questões da tecnologia?
Há muito interesse na tecnologia e o livro tem tido muita leitura. No Medium, há foram passadas mais de 200 mil horas a ler, o que é entusiasmante. Mas o meu próximo livro não será sobre tecnologia. Quero experimentar algo diferente. Gostaria que o livro fosse traduzido para outros idiomas porque este tipo de questões está a ser cada vez mais discutido também em cidades como Lisboa, Londres e Berlim. Teria também apreço em poder falar localmente com as pessoas que lá estão.
Voltaria a trabalhar numa empresa tecnológica em Silicon Valley?
Acho que não. Nos Estados Unidos temos tendência para falar sobre tecnologia de forma adorável e de cortar a respiração, esquecendo que no final do dia são meras empresas e que estão sujeitas às forças de mercado. Está a ser prestado um mau serviço à sociedade. Se as empresas olhassem mais para si próprias tal como são – grandes empresas – então talvez atuassem de forma mais responsável.
O que vai fazer depois da publicação deste livro?
Comecei a minha própria empresa, que desenvolve software para músicos. O melhor antídoto para o sexismo é ter mais mulheres em posições de poder, contribuindo para um ambiente melhor e ajudando a criar a lançar a próxima geração de startups e a liderar as suas empresas.
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