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Era a “Apple portuguesa”. A “Amazon da moda”. Uma referência do mercado de luxo online. A Farfetch foi o primeiro unicórnio criado por um empreendedor nacional, José Neves, quando atingiu uma avaliação superior a mil milhões de dólares sendo uma empresa privada. Estava-se em 2015 e a startup tinha sete anos de operação, depois de ter sido fundada no auge da crise de 2008 – um mês depois do colapso da Lehman Brothers.
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A ideia surgira ao CEO no ano anterior, quando estava na Semana da Moda de Paris a promover uma marca de sapatos e se apercebeu que não havia muitas opções para adquirir peças de luxo online. Neves viu que havia boutiques interessadas no comércio eletrónico, mas as plataformas online não estavam viradas para o luxo. Quando regressou a Portugal, foi para a mesa de desenho com um grupo de engenheiros para criar a plataforma Farfetch.
A aposta resultou. A Farfetch abriu com produtos de 25 boutiques disponíveis em cinco países, apesar das dificuldades em levantar financiamento por causa da crise. Esse entrave foi desbloqueado em 2010, quando já tinha escritório nos Estados Unidos e contava com a oferta de 64 boutiques: fechou uma ronda de financiamento Série A de 4,5 milhões de euros vinda do fundo europeu Advent Venture Partners. Os anos seguintes foram de rápido crescimento e um percurso tão notável que foi alvo de uma tese de mestrado no ISCTE, da autoria de Vasco Silva Cordeiro Constantino Rendas, onde é analisada a caminhada até à dispersão na Bolsa de Nova Iorque, em 2018.
A Farfetch foi uma história de sucesso por mais de uma década. A derrocada aconteceu em pouco tempo e só não levou à insolvência porque o grupo de e-commerce sul-coreano Coupang lhe saiu ao caminho, oferecendo uma injeção imediata de 500 milhões de dólares e a aquisição das operações.
Como se perde um unicórnio
Em 2021, catorze anos depois de ter a ideia para a Farfetch em Paris, José Neves foi um dos convidados do New York Times numa sessão sobre o Futuro da Moda, a propósito da Semana da Moda de Nova Iorque. Lá estavam também a diretora de conteúdos da Condé Nast, Anna Wintour, o diretor criativo de moda feminina na Louis Vuitton, Nicolas Ghesquière, e a atriz Tracee Ellis Ross.
“O futuro da moda? Para ser honesto, não sei”, disse José Neves nesse evento. “É uma das coisas incríveis da moda. É tão imprevisível. E isso faz absolutamente parte do mistério, parte do fascínio desta indústria.”
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As suas palavras acabariam por fazer mais sentido que nunca nos últimos meses, quando se tornou notório um abrandamento do crescimento da moda de luxo, após um boom na pandemia.
O analista Francisco Jerónimo, vice-presidente associado da divisão de dispositivos na IDC EMEA, não tem dados concretos sobre o que aconteceu na Farfetch. Mas refere um efeito no mercado que está a ter consequências.
“Há muitas empresas que ainda se estão a reajustar a um mundo pós-pandemia”, disse ao Dinheiro Vivo. “A queda da procura era esperada mas ninguém esperava a guerra e os efeitos económicos que daí resultaram”, salientou. “Formou-se uma verdadeira tempestade que ainda está para durar.”
A Farfetch, tal como várias outras empresas com negócios online, fez fortes investimentos no seguimento do boom pandémico, não só em tecnologia e infraestruturas, mas também em aquisições. Em 2021 comprou a Luxclusif, uma plataforma de revendas de artigos de luxo criada por Rui Rapazote e Guilherme Faria. Foi o ano em que atingiu o seu pico, em fevereiro, chegando a valer 23 mil milhões de dólares.
No início de 2022, comprou a retalhista de beleza norte-americana Violet Grey e por altura do verão acordou a aquisição de 47,5% da Yoox Net-a-Porter ao grupo Richemont.
Mas os custos elevados da sua estratégia de crescimento, para assegurar ligações às casas de luxo mais cobiçadas, começaram a preocupar os investidores. Em dezembro do ano passado, as ações afundaram 25% quando revelou que esses custos seriam de 170 milhões de dólares.
Várias empresas fizeram fortes investimentos durante a pandemia, numa altura em que a procura online explodia e havia uma ideia de que o “novo normal” não recuaria.
No entanto, como explicou Francisco Jerónimo, as vendas em lojas físicas recuperaram fortemente e os efeitos da inflação e do custo de vida tiveram um impacto no consumo.
“Apesar de o consumo de luxo estar mais imune à queda do poder de compra, a realidade é a maioria das pessoas teve que retrair-se nas despesas”, salienta. Cerca de 40% do mercado global do luxo depende dos compradores aspiracionais e houve aqui uma travagem devido à inflação e receios de uma recessão.
Isso explica que os analistas prevejam uma correção do setor em 2024. Na semana passada, a analista Chiara Battistini, do JP. Morgan, escreveu uma nota a recomendar que os investidores se mantenham à margem de ações de casas de luxo europeias e cortou o rating da LVMH, casa-mãe da Louis Vuitton e Christian Dior, para neutro.
Se a situação económica teve impacto no negócio da Farfetch e o efeito da dívida resultante das aquisições se tornou demasiado alto, a deterioração era inevitável. A braços com 1,6 mil milhões de dólares em dívida que teria de pagar entre 2027 e 2030 e prejuízos de 281 milhões no segundo trimestre, as contas correntes começaram a ficar em causa. A Moody”s meteu os títulos da empresa no lixo, cortando o rating para Caa2, e o presidente do grupo Alibaba, J. Michael Evans, demitiu-se do conselho de administração no início de dezembro. Sem opções, a empresa de José Neves seguiu para a liquidação, saída de bolsa e venda dos ativos à Coupang, em troca de um empréstimo de 500 milhões de dólares.
Contactada pelo Dinheiro Vivo, a Farfetch optou por não comentar, remetendo para o comunicado da venda ao grupo Coupang. É o fim da linha para o primeiro unicórnio com ADN português – o negócio continuará sob outra liderança e talvez outro formato.
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