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A Associação Nacional das Empresas do Comércio e da Reparação Automóvel (Anecra) tem mais de cem anos de atividade. Conta com cerca de 3600 associados e Roberto Gaspar, secretário-geral da entidade, defende ser a de maior abrangência no setor automóvel nacional. Gestor destaca a importância das vendas de usados, mas alerta que o setor como um todo vive momento de “apreensão” e que os elétricos ainda não passam de um nicho.
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Qual é o quadro geral do setor automóvel da perspetiva da Anecra?
Existe um antes e um depois do covid-19. Antes, o setor já atravessava grandes transformações, transformações muito rápidas: a eletrificação das viaturas, um processo que se perspetivava; a digitalização muito acelerada do setor, tanto do ponto de vista dos carros – há 15 anos, um carro tinha 15 chips, hoje tem 300, 400 e, nalguns casos mil – como das vendas; também a alteração de hábitos de consumo, com a troca daquilo que é o sentimento de posse para uma utilização da viatura através do renting. Isto já acontecia e o covid veio acelerar muitas destas transformações.
Quais são os maiores desafios que o setor enfrenta?
Com o covid-19 tivemos a questão da falta de semicondutores, quando grande parte deles foram canalizados para telemóveis e computadores e, quando o mercado abriu, houve uma falta enorme de carros e os consumidores viraram-se para o comércio dos carros usados. Numa primeira fase, foi extremamente benéfico, mas em determinado momento eles [os vendedores de usados] também tiveram dificuldade em renovar stocks. Os principais fornecedores de carros usados eram as gestoras de frota, empresas de rent-a-car e grupos concessionários, mas eles não tinham carros também porque não havia carros novos para renovar os stocks. Portanto, prolongaram-se contratos.
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Qual foi a consequência disso?
Levou a que a importação de carros usados disparasse completamente nos últimos dois anos. Isso levou a que os carros usados valorizassem o seu valor, em média, entre 25% a 27%, segundo dados do Standvirtual. Por exemplo, um determinado tipo de carro, um Mercedes [usado] que valeria 20 mil euros passou, passados dois anos, a valer mais cinco mil euros devido a uma pressão enorme sobre a procura. Havia muito pouca oferta.
Essa valorização dos usados verificou-se até quando?
Até setembro do ano passado [2022].
O que mudou?
Em setembro houve uma travagem acentuada que se deveu, essencialmente, à subida das taxas de juro. Sentiu-se a inflação e houve uma retração da procura. Por um lado, os preços subiram muito e as pessoas perceberam que os carros estavam muito caros. Por outro, quando iam pedir um empréstimo, o preço da prestação tinha disparado. Até ao final do ano, o mercado dos usados esteve estável e, a partir provavelmente de abril/maio [de 2023], retomou um bocadinho mas em segmentos diferentes. Hoje em dia, o setor é um setor mais animado em carros abaixo de 20 mil euros. Nos carros acima de 20 mil euros, não só os valores praticados baixaram como a procura baixou.
E, hoje, que momento atravessa o setor?
Este é um momento de apreensão nos usados. O comércio dos usados é muito particular. Durante muitos anos foi um comércio que era um bocadinho como o patinho feio do setor, ou seja, era um negócio que estava completamente nas mãos de pequenos operadores independentes. Os grandes grupos de retalho e grandes marcas não ligavam muito a essa parte do negócio e libertavam esses carros para estes operadores independentes. Isso mudou há 15 ou 16 anos com a internet e, hoje, um operador, independente que soube adaptar-se ao digital passou a ter uma montra enorme para o país todo, para promover os seus carros e, de repente, pequenos operadores regionais que se transformaram em grandes operadores nacionais. Hoje, os grandes grupos de retalho também perceberam que esta área traz margens. Não se sabe exatamente os números reais, mas aponta-se que o mercado dos usados vale duas a três vezes mais do que o mercado dos carros novos.
Apesar de ser difícil de apurar, mas, em média, quantos carros usados são comercializados?
O ano passado havia 700 mil novos registos relativos aos carros usados, mas isso não significa que tenham sido comercializados.
Aproveitando que foram, recentemente, publicados os dados da ACAP sobre as vendas automóveis até junho, qual é a leitura da Anecra para os primeiros seis meses? E qual é a previsão para a segunda metade do ano?
Existe uma grande apreensão relativamente ao segundo semestre do ano, devido a fatores como o aumento das taxas de juro, o elevado valor dos automóveis e a incerteza sobre qual a melhor opção de compra: veículos a combustão, hídricos ou elétricos?
Uma boa parte das vendas dos carros elétricos comprados em Portugal é alavancada pelos benefícios fiscais que existem. A ajuda é benéfica para o setor ou pode ser um entrave na dinâmica?
É determinante. Diria que se o Estado português retirasse os incentivos, como a redução do IVA e a tributação autónoma, os [números dos] carros elétricos caíam completamente, porque a venda de carros elétricos a particulares é residual.
Como é que Portugal quanto à eletrificação dos automóveis, está num bom caminho?
A realidade dos veículos elétricos deve-se às metas ambientais. A maior parte das evoluções tecnológicas têm a ver ou com necessidades de mercado ou com evoluções tecnológicas que aconteceram e levam o mercado a agir. Não estamos a falar disso. Estamos a falar de, em 2020, a Comissão Europeia ter definido a redução das emissões médias de CO2 para as 95 g/km e, depois, com o pacote Fit for 55 reduzir as emissões líquidas de gases com efeito de estufa em, pelo menos, 55 % até 2030 [em comparação com os níveis de 1990, e alcançar a neutralidade climática em 2050]. Até há um ano, os fabricantes tentaram lutar contra os efeitos disso [a UE determinou o fim da venda de carros a gasolina e gasóleo a partir de 2035]. É um risco enorme para a indústria europeia este processo de transformação – cem anos a trabalhar num sentido e, de repente, vê-se obrigada a fazer uma transformação drástica num espaço de tempo muito pequeno. Mas, nesta altura, os fabricantes percebem que já não valia a pena lutar contra e todos os investimentos vão para os elétricos. Já não há volta. Desse ponto de vista, Portugal é um país dos mais avançados, fruto de uma grande rede de carregadores de baterias e dos apoios, mas por enquanto os elétricos representam um nicho.
Olhando agora para a parte de reparação, para as oficinas. Qual é o volume de negócios do setor da reparação?
O valor é 2,7 mil milhões de euros. Convém dizer, já agora, que o setor automóvel é o principal contribuinte líquido para o Orçamento do Estado (OE) português, apesar de nem sempre ser muito bem tratado pelas entidades governamentais. Representa quase 20% do OE, pelas vendas, pelo IUC, ISV, ISP e do IVA que está agregado a isso. É uma contribuição bastante importante para a economia.
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