Partilhareste artigo
A primeira descoberta foi aos oito anos. Sem amigos e sem jogos por perto, o ZX Spectrum não foi um mero presente dos pais: José Neves recebeu o computador e aprendeu a programar. Seria um momento decisivo na sua vida. Filho único de pais trabalhadores, o menino vivia numa pequena cidade à beira-mar no Norte do país para tratar da asma e nem gostava de moda.
Mal saberia que faria disso carreira, ao fundar, em 2007, a plataforma de moda de luxo Farfetch. Com ela, tornou-se no segundo mais rico de Portugal: a sua fortuna vale 2,8 mil milhões de dólares (2,3 mil milhões de euros). Até aí chegar, José nunca perdeu o controlo e soube esperar. O negócio já teve resultados positivos no último trimestre de 2020 e tudo indica que neste ano as receitas vão superar os gastos.
“O José vive do sonho”, destaca Cipriano Sousa, responsável tecnológico e o mais antigo parceiro do líder da Farfetch. Os dois trabalham juntos há mais de 25 anos, graças à combinação da ambição de José com a ponderação de Cipriano. “Conhecemo-nos tão bem que podemos passar semanas sem nos falarmos mas eu sei o que ele quer de mim”, refere o parceiro ao Dinheiro Vivo. Os dois conheceram-se na Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Trabalharam juntos pela primeira vez em 1994: criaram o ShoeGeste, software de raiz para as fábricas de calçado da região Norte.
Já lá iam os tempos em José “detestava a moda. Pensava que era uma coisa frívola, uma perda de tempo e de dinheiro. Desprezava mesmo a moda”, contou o empresário português em fevereiro ao Financial Times (FT). Em 1995, já depois de aprender com um mestre, nasceu a marca de sapatos Swear, em Londres. Havia uma loja física em Covent Garden, mas logo em 1996 nasceu a versão online.
Subscrever newsletter
José Neves via os japoneses e australianos a entrarem na loja e começou a pensar como é que estes sapatos poderiam chegar a todo o mundo graças ao poder da internet – e da logística. Em 2001, surgiu a B-Store, no bairro de Mayfair. Reunindo jovens criadores e várias instalações, este conceito valeu, em 2006, o troféu de loja do ano dos prémios de moda britânicos.
A vida mudou em outubro de 2007, num dia de chuva em Paris. “No final da semana de moda, os empresários começaram a perceber que o sistema não estava bem. Tinha de haver uma solução para juntar estas boutiques numa plataforma. Tinha de haver algum doido a fazer algo que Alibaba, Amazon e eBay não tinham feito com a moda de luxo”, recordou José Neves, em dezembro, no podcast da edição brasileira da Exame.
Foi a partir daí que os dias do português começaram cada vez mais cedo, pelas cinco ou seis da manhã. Ao levantar-se a esta hora, consegue resolver boa parte dos assuntos antes de começar a receber os telefonemas do dia. Mesmo dormindo menos de seis horas por dia, o empresário nunca perde o foco. “Se combinar terminar uma reunião às 17h e começar outra às 17h, não há desvios. Ele dedica-se totalmente a uma pessoa”, destaca um amigo empreendedor na área da moda.
Leia também:
Farfetch. It’s a billion dollar Portuguese company, baby!
O budismo contribui para a calma e o foco do líder da Farfetch. Esta descoberta deu-se aos 13, quando José Neves leu pela primeira vez o Livro da Via e da Virtude, obra fundamental da tradição asiática do Taoísmo. Foi aqui que nasceu o interesse do empresário na Psicologia e no processamento das emoções. Essa serenidade foi decisiva para vários momentos de resistência da Farfetch.
Em 2008, depois de um ano de desenvolvimento nos bastidores, foi lançada a plataforma para os consumidores comprarem artigos de boutiques de todo o luxo. A principal inovação foi que a Farfetch não possuía qualquer mercadoria; a comissão por artigo vendida era a única fonte de receitas. A primeira ronda de investimento estava a caminho, mas a falência do Lehman Brothers mudou tudo.
A empresa aguentou-se apenas com capitais próprios até 2010. “Foram poupanças minhas, recursos partilhados com a minha outra empresa, cash flow do negócio anterior de tecnologia, um pocket all in. Se não tivesse funcionado, iam as três empresas à falência. Tivemos sorte”, revelou em 2016 à revista Visão.
Explicar a missão da Farfetch foi outro dos grandes desafios da Farfetch. “Nos primeiros cinco anos, quase entrava em colapso nervoso em cada semana de moda. As boutiques recebiam ultimatos das marcas para pararem de vender para nós. Andei a viajar para Paris e Milão a pedir-lhes para nos darem uma chance”, recordou ao FT.
O início de 2020 foi outro momento de forte resistência. O coronavírus deixava o mundo de pantanas e as ações da plataforma andavam em mínimos históricos, na barreira dos 7 dólares – a entrada em bolsa foi feita a 20 dólares por título em setembro de 2018. Mesmo pressionado pelo mercado, José nunca carregou no botão de pânico. De abril até agora, as ações da Farfetch ultrapassaram os 70 dólares na semana passada.
Leia também:
Farfetch recebe mais de mil milhões de investimento da Alibaba (e não só)
Cipriano Sousa absorveu a calma de José Neves num jantar que os dois tiveram no final de novembro, acompanhado de um bom peixe e de um bom vinho. “Falar com o José foi como estar com um guru espiritual. O budismo ajudou nisso. No meio da complexidade, ele parece estar cada vez mais sereno. Nunca parece estar sob pressão. Saímos leves deste jantar.”
Mais recente é a amizade do líder da Farfetch com Paula Amorim. Os dois partilham o investimento na plataforma de tecnologia para moda Plataforme, fundada em Portugal. “É um empreendedor visionário, uma pessoa que admiro e respeito. Um ótimo amigo. Aprecio a sua capacidade de ver mais longe, a sua energia, audácia e persistência”, salienta a empresária em declaração por escrito.
Paula Amorim também chama a atenção para a preocupação de José Neves em “deixar um legado, a preocupação com a partilha do conhecimento e o desenvolvimento da sociedade como um todo”. A Fundação José Neves foi lançada em setembro, com cinco milhões de euros de orçamento inicial. A prazo, serão utilizados dois terços da sua fortuna.
Adepto do minimalismo japonês e sempre atento a documentários, José Neves ainda tem tempo para tomar conta de cinco filhos – com mais um a caminho -, fruto de dois casamentos.
Cruzando a criatividade com a programação, o português quer pôr a Farfetch como a plataforma digital de referência da moda de luxo, em parceria com marcas e boutiques. Só no ano passado, as compras online valeram 58 mil milhões de dólares, representando 23% do mercado do luxo, segundo a consultora Bain & Company.
Deixe um comentário