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Chegou à Salvador Caetano em 2012, para liderar a reestruturação da Cobus, a unidade de autocarros para aeroporto do grupo que é líder mundial do setor. Oito anos depois, Patrícia Vasconcelos foi chamada a liderar a CaetanoBus para desenvolver novo processo de reorganização interna. Vem cortar gorduras, mas também tornar a estrutura mais eficiente. E aposta tudo na mobilidade limpa e, em especial, no hidrogénio verde que, acredita, é o futuro.
Assumiu em maio a presidência executiva da CaetanoBus, é um ano difícil para começar projetos novos, não?
Sem dúvida, mas, às vezes, é com as crises que se conseguem fazer as mudanças necessárias. Como em tudo, há sempre um lado positivo.
Vem para reestruturar a Caetano Bus como fez na Cobus?
Também. Mesmo sem a crise, a CaetanoBus iria precisar de uma reestruturação. Com a crise, precisa, como todas as empresas, de se redimensionar e reorientar. Precisa de processos mais simples, mais smart. É uma empresa com muita tradição, com muita experiência dentro de porta, mas que não se foi adaptando às novas tecnologias, em termos de processo interno. Sempre foi muito aberta às tecnologias, em termos de inovação de produto, disruptiva até, mas internamente continuou a fazer como sempre fez. Chega-se a um ponto em que estes produtos completamente diferentes, com tecnologias de produção também diferentes, já não são compatíveis com a forma como se fazia antigamente, sem as máquinas e os equipamentos necessários.
Estamos a falar de investimento em digitalização e automação?
Sim. Muito investimento na fábrica em si, em meios de produção, mas também em formação de pessoas, para as adaptar a estas novas formas de fabricar e aos novos produtos.
Vai haver despedimentos?
Temos sempre lutado contra despedimentos. Reduzimos alguma coisa na produção, sobretudo através da não renovação de contratos a prazo, pela queda que tivemos da atividade, com a pandemia, mas estamos a investir em pessoas por causa do futuro que a Caetano Bus tem pela frente na mobilidade elétrica. Estamos a crescer em áreas core, contratando para a engenharia de processos, a prototipagem e o pós-venda.
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Estamos a falar de uma renovação geracional?
E de negócio. Nós temos pessoas com muito conhecimento na produção de autocarros a diesel, mas que não dominam a componente de eletricidade e de mecatrónica para os novos produtos elétricos e de hidrogénio. São essas pessoas que temos de ir buscar.
Não há forma de os reciclar? Quantas pessoas contrataram e quantas saíram?
Estamos a fazer formação interna, sim, mas com a redução do volume de negócio tivemos que reduzir. No ano passado tínhamos 950 pessoas, mas produzimos quase 700 unidades. Este ano vamos produzir 425. Diria que acabaremos o ano com 850 pessoas e que, em 2021, ficaremos ela por ela.
Entrámos em 2020 com uma carteira de encomendas como nunca na Cobus. Com a pandemia foi tudo por água abaixo.
Faturaram 101 milhões em 2019. Quais são as perspetivas para 2020?
Apontamos para 87 milhões de euros e 425 autocarros. Destes, 150 são Cobus, metade do que estava previsto no início do ano. Somos líderes de mercado mundial nos autocarros de aeroporto e a Cobus teve, em 2018 e 2019, os melhores anos de sempre. E entramos em 2020 com uma carteira de encomendas como nunca. Depois veio a pandemia e foi tudo por aí abaixo. Desde março que não entra uma única encomenda para um autocarro de aeroporto. Sentiu-se alguma melhoria agora em setembro, mas com a segunda vaga foi tudo por água abaixo. Estamos completamente parados nesse segmento de aeroporto. E no turismo também. Temos aqueles autocarros da National Express, que fazem a ligação dos aeroportos aos centros das cidades, e também aí não temos uma única encomenda.
E 2021?
Ainda vai ser mais duro. Os investimentos que estavam previstos nos aeroportos e no turismo pararam todos e não será antes do final de 2021 que o setor irá recuperar. Felizmente, os municípios têm mantido os concursos públicos na parte do negócio dos autocarros urbanos e é disso que vamos vivendo. Houve o grande concurso para a Área Metropolitana de Lisboa, vai sair agora também para a Área Metropolitana do Porto e, felizmente, conseguimos colocar aí alguma produção. Mas nunca conseguimos compensar tudo o que estamos a perder no turismo e aeroportos.
Dos 425 autocarros produzidos em 2020, quantos são elétricos e a hidrogénio?
São 82 autocarros que são zero emissões. Mas também temos muitos CNG (gás natural comprimido). Tudo o que foi para a Carris e para a STCP em 2019 foi a gás.
Quem é que ainda encomenda diesel?
Portugal ainda encomenda diesel. Os concursos da AML e da AMP ainda têm lotes enormes de diesel. Acho que na AML a percentagem é para aí de 90%. Muitos operadores não têm capacidade para converter a frota para elétricos e depois de uma crise muito menos. Acho que o governo acabou, se calhar, por ceder aqui um bocadinho para aguentar ainda os operadores.
Os investimentos previstos no turismo e aeroportos pararam todos e não será antes do final de 2021 que o setor recupera.
O autocarro elétrico é muito mais caro?
É quase o dobro. Depois, obviamente que em termos de manutenção, o chamado total cost of ownership, acaba por compensar, mas neste momento as pessoas estão com a corda na garganta. Principalmente em Portugal, porque lá fora os concursos têm sido todos elétricos ou hidrogénio.
O Plano de Apoio à Recuperação e o próprio Green Deal têm um grande foco na transição energética, pensei que isso se notasse já no terreno.
Lá fora sim, cá infelizmente ainda não.
Fale-me dos investimentos que estão a fazer.
Estão completamente focados em tudo o que é a mobilidade limpa. Ainda produzimos autocarros a diesel, claro que sim, mas só modelos que já foram desenvolvidos, que não exigem qualquer investimento. Na mobilidade elétrica e no hidrogénio investimos 10,5 milhões de euros nos últimos anos. Só no hidrogénio foram 4,5 milhões e estamos a prever gastar nove milhões adicionais nos próximos cinco anos.
Em investigação e desenvolvimento?
Sim, e no aumento do portefólio de produtos. Nós, neste momento, estamos no elétrico e no hidrogénio nos autocarros urbanos, e no elétrico nos autocarros de aeroporto. No turismo ainda continuamos só com diesel. O futuro é investir no hidrogénio para os autocarros de aeroporto e de turismo, e apostar também noutras gamas de urbanos elétricos e de hidrogénio. Esta é a nossa missão, estamos cá para contribuir para o bem do nosso planeta, a ideia é mesmo qualquer dia não termos um único autocarro a diesel a sair das nossas instalações.
Quando será isso?
Nunca antes de 2030. O Cobus, por exemplo, é um produto que vendemos para o mundo inteiro e há regiões que ainda estão longe de fazer essa transição. Nos urbanos muito mais cedo, os autocarros de turismo se calhar lá para 2025 ou 2026.
E estão também no hidrogénio na área ferroviária…
Sim. Quando foram lançados os concursos em junho entrámos com a CP e com a Faculdade de Engenharia do Porto num projeto para converter uma locomotiva da CP de diesel para hidrogénio. Foi a própria CP que nos convidou porque nós temos a tecnologia Toyota que é completamente aplicável a tudo o que sejam transportes pesados.
Portugal ainda encomenda diesel. Muitos operadores não têm capacidade para converter a frota para elétricos.
Como vê a polémica do hidrogénio verde em Portugal?
Como tudo o que é novo, é normal haver sempre alguma resistência. Mas acredito que o hidrogénio verde é o futuro, é o cerne da nossa estratégia. Não sozinho, obviamente. Em termos de transporte público, vemos os elétricos e os autocarros a hidrogénio a conviverem juntos. Distâncias mais curtas e com carros mais pequenos, nas cidades, podem perfeitamente ser feitas com autocarros elétricos. No médio e longo curso, tem de ser o hidrogénio, porque o elétrico não tem autonomia.
A CaetanoBus já entregou autocarros a hidrogénio, mas não há hidrogénio em Portugal. Como têm ultrapassado essa limitação?
Estamos muito limitados por causa disso. Trazemos o hidrogénio de Espanha, em tanques, para conseguirmos mover o autocarro e testá-lo aqui. Depois, antes de ir para o cliente final, ainda temos que o levar a Espanha fazer uma série de testes. Tem sido uma dor de cabeça, mas é a única hipótese que temos.
Apoiam então o investimento em Sines.
Completamente. É preciso criar redes de abastecimento de hidrogénio no país. Alguém tem que começar, quanto mais consumido for, mais competitivo será.
Quanto custa um autocarro a hidrogénio e quem são os grandes clientes?
Custa três vezes mais que um a diesel. A maior parte dos concursos para autocarros de hidrogénio estão a sair na Alemanha, em França e em Espanha. Temos oito unidades para entrega em Barcelona, quatro para Bielefeld e 10 para Wiesbaden, na Alemanha, e um para França. E há outros concursos a decorrer a decorrer em Frankfurt, em Munique, em Dusseldorf. A Alemanha está a apostar fortemente no hidrogénio. Acho que os alemães perderem um bocadinho a onda do elétrico, com a Mercedes, a MAN e os grandes produtores de autocarros a atrasarem muito o lançamento do elétrico, então, agora, estão a apostar fortemente no hidrogénio. Em Portugal também há algumas cidades interessadas, como Lisboa, Cascais, Vila Nova de Gaia e o Porto, mas falta a infraestrutura. A Câmara de Gaia lançou um concurso na semana passada precisamente para a concessão de uma estação de hidrogénio, que nos vai dar muito jeito.
2021 vai ser ainda muito difícil, e 2022?
Em 2022 esperamos aumentar o rácio de elétricos e de fuel cell, introduzindo já as novas gamas de produtos. Para o ano, contamos ter um volume de negócio equivalente ao deste ano, mas em 2022 esperamos já subir para 130 milhões. E depois vai subindo. O plano para 2025 é que estaremos já quase nos 300 milhões, um crescimento assente no hidrogénio, seja em termos de autocarros urbanos, seja de aeroporto e turismo. Estamos a ser os first movers, há muito poucos produtores de autocarros a hidrogénio.
Há cidades portuguesas interessadas no hidrogénio, mas falta a infraestrutura de abastecimento.
E em termos de mercados?
Vemos o Canadá e os EUA com grandes potencialidades para o hidrogénio. São mercados de entrada muito difícil, porque neste segmento de autocarros eles são muito exigentes e os regulamentos são diferentes, mas vamos estudá-los. E vamos continuar a focar-nos na Europa e procurar fazer a transição no Médio Oriente para os autocarros de aeroporto a hidrogénio.
A mudança política nos EUA ajuda à pretensão da Caetano Bus de apostar naquele mercado?
Sem dúvida. Há uma maior abertura, mais facilidade de incorporação cá e mandar para lá. Até há dois meses, o que se falava mais era Buy American e era necessário incorporar muito mais lá, e os EUA são um país que tem uma produção muito cara. Já visitei algumas fábricas e, de facto, o custo produtivo lá é muito mais alto. Mesmo com o custo de transporte e as taxas de importação, o nosso produto é mais barato do que o deles. Isto vai facilitar que não tenhamos de pensar em deslocalizar a produção. Podemos deslocalizar algumas partes, mas mantemos o core cá. Mas antes de 2022 não deve acontecer nada, esta é uma análise que vai demorar.
Os apoios do Governo às empresas afetadas pela pandemia foram adequados e suficientes?
Na altura em que tivemos de parar, em abril e maio, o lay-off simplificado foi uma grande ajuda. Neste momento, estamos com excesso de pessoas, mas não as queremos despedir porque o conhecimento é importante e, se Deus quiser, amanhã as encomendas hão de chegar. Mas está a ser muito difícil. Se tivéssemos mais apoios agora seria muito bom. Porque a economia não recuperou.
Que tipo de apoios?
Precisávamos aqui de ajustar as pessoas com um banco de horas ou alguma forma de não ter que as despedir, mas poder compensar o que elas não estão a trabalhar agora mais tarde. Porque elas estão cá mas não estão a trabalhar. Obviamente, estão a ter formação, mas isto tem limites, não posso ter as pessoas em formação durante quatro meses.
Vamos terminar como começámos, a propósito do plano de reestruturação, como é que ele se traduz em números?
No fundo, a nossa grande meta na eficiência é a redução dos preços de venda. Nos elétricos temos os chineses que nos dão cabo dos preços todos. Neste momento, ou reduzimos e somos mais eficientes, ou perdemos dinheiro. No hidrogénio, ainda estamos a começar, mas enquanto estiver o diesel a 200 mil euros e o hidrogénio a 600 mil dificilmente vamos ter renovações de frotas grandes.
Estamos a falar em reduções de que ordem e em que prazo?
De 3 a 5% até 2025. Nós até 2025 queremos reduzir entre 3 e 5%.
Como é que a sua chegada foi recebida numa indústria que é essencialmente masculina?
Nunca tive um único problema por ser mulher, nunca me senti posta de lado, mesmo no Médio Oriente. Nunca.
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