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O mercado livreiro em Portugal perdeu cerca de 17% em 2020. O grupo BertrandCírculo (que engloba a Bertrand Editora, distribuidora de livros Bertrand, livraria Bertrand e Círculo de Leitores) admite que o ano de 2020 foi pior que o anterior. E não antecipa muitas diferenças em 2021. Conta com 600 funcionários e “discorda de qualquer proibição imposta à venda de livros, por entendermos que este é um bem essencial”. Num país com baixos índices de leitura e onde o setor editorial é fragmentado, os encerramentos de empresas podem mesmo vir a acontecer.
Em entrevista por escrito ao Dinheiro Vivo, Paulo Oliveira, CEO do grupo BertrandCírculo, assume, sem quantificar, que fecharam 2020 “com perdas face a 2019. Sendo uma das empresas do grupo o maior retalhista especializado de livro do país – a Livraria Bertrand -, infelizmente não seria sequer razoável esperar que assim não fosse”. Na reta final do primeiro trimestre de 2020, Portugal entrou no primeiro confinamento, o que determinou o encerramento dos espaços comerciais. No caso do grupo, as livrarias ficaram de portas fechadas quase dois meses e meio. E quando tiveram autorização para abrir, as restrições ditaram também “uma quebra muito acentuada no número de clientes”.
Paulo Oliveira admite que “para o setor do livro, face à incerteza da evolução da pandemia, as nossas expectativas atuais são que 2021 seja muito semelhante a 2020, embora com a expectativa de que o aligeirar progressivo das restrições à atividade, à medida que cheguemos ao final do ano, possa acabar por trazer um resultado ligeiramente mais positivo”. O último trimestre, com o Natal, é das épocas mais fortes para as vendas de livros. Para a BetrandCírculo, “o cenário não será muito diferente, mas dependerá substancialmente da performance das nossas novidades editoriais”.
A pandemia, que já está presente há quase um ano, obrigou o grupo a “reequacionar os planos de negócios das nossas empresas”, tanto ao nível dos constrangimentos que surgiram como “do ponto de vista de rentabilidade” em que “foi fundamental contrabalançar a diminuição dos proveitos com uma redução dos custos operacionais”. Com cerca de 600 funcionários, maioria dos quais adstritos às livrarias, a BertrandCírculo diz que “quer no primeiro, quer no segundo confinamentos gerais recorremos aos apoios públicos disponíveis na medida do necessário e do justificável. Sem esses apoios os impactos do encerramento compulsivo das nossas livrarias seriam absolutamente insustentáveis”.
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Apesar de, e tal como outras empresas, beneficiar dos apoios públicos, o grupo “discorda de qualquer proibição imposta à venda de livros, por entendermos que este é um bem essencial, como tem sido reconhecido noutros países europeus igualmente afetados pela pandemia. A lei portuguesa reconhece, de resto, que o livro é um bem essencial, seja através da lei que estabelece a sua venda a preço fixo, seja pela taxa especial de IVA que lhe é aplicada, pelo que nunca a venda de livros deveria ter sido condicionada e muito menos faz sentido impedir os livros de serem vendidos ao postigo”.
Setor fragmentado
Depois de um ano de pandemia, Paulo Oliveira acredita que a principal consequência para o setor do livro “é a acrescida fragilização da vasta maioria das empresas de um setor que já de si tem deficiências estruturais decorrentes da reduzida dimensão do mercado, decorrente da demografia do país e dos baixos índices de leitura dos portugueses, bem como da acrescida concorrência dos conteúdos não escritos que, como sabemos, não exigem uma atitude proativa dos consumidores, como as plataformas de streaming e as redes sociais”.
Com o setor a sentir os efeitos do contágio da pandemia, e numa altura em que se debate o alargamento das moratórios para alguns setores mais afetados (ainda se sabe quais) a BertrandCírculo assume que “felizmente até ao momento” não “teve necessidade de, em grande medida, recorrer ao regime de moratórias”. Mas não esconde que o eventual fim desta medida para o setor pode levar a encerramentos no setor editorial.
Quanto aos baixos índices de leitura, o responsável acredita que, para haver uma mudança são necessárias “medidas estruturais de longo prazo, o que dificilmente se perspetiva possível sem um pacto de regime sobre o tema”.
Perguntas à Paulo Oliveira, CEO do Grupo BertrandCírculo
A APEL já revelou que, em 2020, o mercado perdeu cerca de 17%. Como é que foi o ano passado para o grupo?
O Grupo BertrandCírculo terminou, inevitavelmente, o ano com perdas face a 2019. Sendo uma das empresas do grupo o maior retalhista especializado de livro do país – a Livraria Bertrand -, infelizmente não seria sequer razoável esperar que assim não fosse. Recordo que, no primeiro confinamento geral, as nossas livrarias estiveram encerradas cerca de dois meses e meio (um pouco menos no caso das livrarias de rua e um pouco mais no caso das livrarias dos centros comerciais da área metropolitana de Lisboa), o que se traduziu em perdas de vendas muito significativas, uma vez que as vendas à distância (online e telefone) apenas conseguiram captar cerca de 1/5 das vendas perdidas com o fecho das livrarias físicas. Nos meses subsequentes, assistimos a uma quebra muito acentuada no número de clientes que frequentaram as livrarias, não só pelas restrições aplicadas nos horários de funcionamento das livrarias, mas também pelo limite de ocupação dos estabelecimentos comerciais que foi imposto, o que não nos permitiu recuperar as perdas sofridas durante o primeiro confinamento geral. Já no caso da Bertrand Editora, tivemos de suspender o lançamento de novidades como consequência do primeiro confinamento geral, sendo que os livros que ainda assim lançados no primeiro semestre foram seriamente prejudicados pela perturbação vivida no retalho.
Já no segundo semestre, a nossa perspetiva é que mesmo aqueles livros que foram bem-sucedidos viram o seu potencial manifestamente limitado pelo referido contexto, pelo que globalmente o ano ficou claramente aquém das nossas expectativas. A Distribuidora de Livros Bertrand sofreu igualmente pelo lado da procura devido ao fecho do retalho e pelo lado da oferta devido à redução dos planos editoriais dos editores seus distribuídos. Finalmente, o Círculo de Leitores foi de todas as nossas empresas a mais afetada, na medida em que o seu modelo de operação é aquele que é mais impactado pelos constrangimentos impostos pela pandemia. De facto, quando o nosso modelo de negócio está alicerçado numa relação de tal proximidade com os nossos clientes que implica visitas domiciliárias é fácil entender que os constrangimentos à nossa atividade foram quase intransponíveis.
O relacionamento com os clientes passou a ser feito à distância, mas não é fácil levar a cabo uma tão profunda transformação num espaço de tempo tão curto e num contexto de tão significativas restrições operacionais.
O grupo tem cerca de 60 livrarias espalhadas pelo País – além do canal online – e tem também a área da edição de livros. Por esta via, há livros “vossos” que são comercializados por outros canais, como lojas multiplataforma e grandes superfícies de retalho alimentar. Quais são as expectativas para este ano para o grupo? E para o setor do livro?
Para o setor do livro, face à incerteza da evolução da pandemia, as nossas expectativas atuais são que 2021 seja muito semelhante a 2020, embora com a expectativa de que o aligeirar progressivo das restrições à atividade, à medida que cheguemos ao final do ano, possa acabar por trazer um resultado ligeiramente mais positivo, em virtude de essa ser a época mais importante do ano em termos de vendas para o mercado editorial. Para o Grupo BertrandCírculo o cenário não será muito diferente, mas dependerá substancialmente da performance das nossas novidades editoriais, uma vez que no ano passado as novidades do Prof. António Damásio, da Cristina Ferreira, do Cardeal Tolentino de Mendonça, do Miguel Esteves Cardoso e do Frederico Lourenço, só para nomear algumas, tiveram excelentes receção pelos leitores. Mas temos também um excelente plano editorial para 2021 que estamos confiantes merecerá igualmente a preferência dos leitores portugueses.
Com a pandemia alteraram o plano de negócios que tinha traçado tanto em 2020 como em 2021? Redução de abertura de lojas? Lançamento de novos livros?
A pandemia obrigou-nos naturalmente a reequacionar os planos de negócios das nossas empresas, desde logo pelo necessário reajuste imposto pelos constrangimentos às nossas diversas atividades, mas também porque do ponto de vista de rentabilidade foi fundamental contrabalançar a diminuição dos proveitos com uma redução dos custos operacionais. Para tal foi importante a articulação com a nossa cadeia de valor, mas também o recurso aos apoios públicos, designadamente à manutenção dos postos de trabalho. Uma das áreas de maior foco foi a das rendas das nossas livrarias, que impôs um enorme esforço negocial com os nossos senhorios, uma vez que o enquadramento legislativo foi absolutamente turbulento e muito pouco objetivo. Mas pela positiva gostaria de esclarecer que a Livraria Bertrand manteve e até reforçou ligeiramente o seu plano de investimento em lojas, uma vez que o período de paragem forçada da operação é propício a realizar intervenções de requalificação das livrarias existentes e a apostar na abertura de novas unidades (em 2020, abrimos livrarias em Almada, Espinho, Évora e Lisboa, e, brevemente, abriremos uma livraria em Vila Franca de Xira).
Finalmente, quanto à redução do número de lançamentos de novos livros, essa foi uma das áreas onde tivemos mais preocupações, pois lançar novidades num período conturbado como o que vivemos podia implicar a destruição da rentabilidade potencial dos investimentos que vínhamos a fazer nos últimos tempos. Assim, foi necessário aferir com rigor quais os títulos a lançar – face às limitações impostas às livrarias que condicionam o número de leitores que as visita -, conscientes de que a vasta maioria dos editores tentaria publicar nos restantes meses os livros que suspenderam durante o confinamento, o que geraria uma saturação de novidades no mercado.
Quais as consequências que, quase um ano de pandemia têm para todo o setor do livro em Portugal?
A principal consequência é a acrescida fragilização da vasta maioria das empresas de um setor que já de si tem deficiências estruturais decorrentes da reduzida dimensão do mercado, decorrente da demografia do país e dos baixos índices de leitura dos portugueses, bem como da acrescida concorrência dos conteúdos não escritos que, como sabemos, não exigem uma atitude proativa dos consumidores, como as plataformas de streaming e as redes sociais.
Portugal era já (antes da pandemia) um dos países europeus com os índices de leitura mais baixos. Com a pandemia, e dada a quebra no mercado, é possível que essa realidade não se altere. Que efeitos é que isso tem para o País? E que efeitos tem para um dos maiores grupos livreiro e editor em Portugal?
A alteração dos baixos índices de leitura dos portugueses carece de medidas estruturais de longo prazo, o que dificilmente se perspetiva possível sem um pacto de regime sobre o tema. O nosso setor é vítima das constantes inflexões das políticas educativas, culturais e sociais, que infelizmente cada vez mais alienam a predisposição dos portugueses para encarar a leitura e a cultura como elementos de desenvolvimento pessoal de caráter aspiracional. Infelizmente, estamos cada vez mais voltados para o imediato, para o frívolo e para a nossa imagem social, descurando inclusivamente a formação do nosso ativo mais valioso – as crianças. Temos procurado chamar a atenção para este problema, pois encaramos esta situação como uma das maiores ameaças que impende sobre o nosso povo e a nossa cultura.
A partir de 15 de fevereiro entrou em vigor o 11º estado de emergência e os livros voltam a poder ser vendidos em supermercados e hipermercados, bem como outros espaços que tenham autorização para estar abertos. Como é que o grupo viu a decisão que vigorou nos dois estados de emergência anteriores e como é que vê a decisão atual?
O Grupo BertrandCírculo discorda de qualquer proibição imposta à venda de livros, por entendermos que este é um bem essencial, como tem sido reconhecido noutros países europeus igualmente afetados pela pandemia. A lei portuguesa reconhece, de resto, que o livro é um bem essencial, seja através da lei que estabelece a sua venda a preço fixo, seja pela taxa especial de IVA que lhe é aplicada, pelo que nunca a venda de livros deveria ter sido condicionada e muito menos faz sentido impedir os livros de serem vendidos ao postigo. O livro não é certamente menos essencial que os artigos de papelaria, jornais ou revistas, equipamento informático, flores, entre outros produtos cuja disponibilidade não foi posta em causa pelas medidas decretadas desde o início da pandemia e deve estar à disposição de toda a população e não apenas da pequena parte desta que tem condições para recorrer a canais online. O recente Decreto do Senhor Presidente da República – que proibiu o Governo de proibir a venda de livros no comércio a retalho que pode manter-se em funcionamento – tem de ser interpretado, de resto, como uma confirmação inequívoca da sua essencialidade, da sua indispensabilidade. Por conseguinte, entendemos que a sua venda não deve ser proibida em qualquer ponto de venda, seja nos estabelecimentos especializados (livrarias) seja nos que vendem outros produtos.
Quantos trabalhadores têm o grupo? Aderiram no primeiro confinamento aos mecanismos de apoio às empresas e ao emprego como o lay-off simplificado? E neste segundo confinamento?
O Grupo BertrandCírculo mantém em média, ao longo do ano, aproximadamente 600 trabalhadores no ativo, sendo que a maioria destes se encontram adstritos à Livraria Bertrand. Quer no primeiro, quer no segundo confinamentos gerais recorremos aos apoios públicos disponíveis na medida do necessário e do justificável. Sem esses apoios os impactos do encerramento compulsivo das nossas livrarias seriam absolutamente insustentáveis, pelo que os mesmo se mostraram essenciais para a salvaguarda da nossa estrutura operacional.
Perante a atual conjuntura, o grupo vai ter de despedir?
O Grupo BertrandCírculo tentará sempre ao máximo preservar os seus postos de trabalho, uma vez que a qualidade que nos é reconhecida pelos nossos clientes depende em grande medida do know how dos nossos colaboradores, que obviamente demora muitos anos a adquirir. Assim nunca será por dificuldades meramente conjunturais que tomaremos esse tipo de medidas.
Com a pandemia foi também implementado um regime de moratórias para as famílias e empresas, que vai terminar em setembro. Foi um regime ao qual aderiram? E como encaram o fim das moratórias?
Felizmente até ao momento o Grupo BertrandCírculo não teve necessidade de, em grande medida, recorrer ao regime de moratórias, uma vez que conseguimos sempre encontrar soluções articuladas com os nossos parceiros de negócio.
Com o fim das moratórias, e do vosso conhecimento do mercado, muitas editoras, livreiros e livrarias podem encerrar?
O problema das moratórias é exatamente o facto de serem moratórias, ou seja, um instrumento que apenas difere no tempo o cumprimento de uma determinada obrigação. Ora se essa obrigação já não era sustentável antes da situação que justificou a moratória, dificilmente será sustentável depois dessa situação terminar. O problema é que, como já referimos, a fragilidade do setor editorial português era pré-existente e estrutural (se quiser, era uma comorbidade do setor), como referimos anteriormente, pelo que a pandemia exponenciou essa fragilidade podendo levar a vários encerramentos no nosso setor.
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